sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Do contágio industrial



Gaff


Como a indústria faz tempo? Agora que abandonamos todas as ilusões de um tempo-moldura, aquém de qualquer processo temporal, pode-se indagar por sua autêntica fabricação.

Para ali se destinaram dezenas, depois centenas... agora já se contam aos milhões. Como isto foi possível? Que a obsessão com a organização, com a conformação, tenha sido capaz de propagar um exército tão prontamente eficiente, é este o fazer industrial sobre o qual ainda precisamos nos admirar. Como conformar o heterogêneo? A que se deve ceder? Seja o que for, sentiu o camponês como uma perda? Quando a trabalhosa intervenção do artesão, que precisa negociar a cada vez, foi substituído pela intervenção da máquina, esta negociadora implacável, o que se sentiu?

Sem a presunção de que o passado se repete necessariamente, sem a presunção de que o passado tem qualquer razão de ser, fora o simples fato de que é, toda pergunta pelo que se é tem também de lidar com a pelo que se deve ser e pelo que se pode ser. Daí a indústria: onde o tempo é tornado irreversível, ou seja, onde alianças fortíssimas são asseguradas e lançadas por todos os lados; contágio epidêmico – pandemia industrial. O capitalismo foi feito por coisas.

Só por desespero se construíram todos os humanismos: era preciso parar a reificação, era preciso esclarecer-nos, curar-nos do fetichismo. Não eram afinal as coisas produtos? Não era afinal a indústria nossa criação? E, no entanto, o processo nunca parava: entravam “camponeses” e “matéria prima”, saíam às vezes operários, às vezes consumidores, às vezes  roupas de algodão, às vezes objetos de luxo, saíam a cada vez coisas particulares, papéis determinados, que rejeitavam as abstrações: “___eu não sou ‘mercadoria’ meramente, eu sou muito interessante, por alguns instantes é possível ser feliz ao meu lado”, dizia-nos a coisa da vitrine; “___eu não sou ‘proletariado’ meramente, eu não sou operário, eu sou algo mais, sou cristão, sou jogador cartas, sou inglês, bebo com meus amigos, aquele é Smith, pobre coitado, perdeu a mão e agora está sem emprego”, dizia-nos alguém. Um dia já não entravam mais camponeses. Já não se sabia o que entrava. E o processo não parava.

O mundo já era uma população abusada de coisas. Nas lojas de departamento toda relação comercial torna-se uma interação híbrida (humanos e não-humanos): o consumidor defronte a prateleira; não são necessários intermediários. A boa disposição sozinha é capaz de sedução: a magia da vitrine por todos os lados. Menos horas de trabalho, mais tempo com as coisas. Esta aqui demanda uma certa postura, uma poltrona, ouvidos atentos, pequenos aliados chegam de longe: a sala de estar será a sala do rádio, depois da TV.

Que estranha arrogância é capaz de afirmar um mundo absolutamente humano quando por todos os lados o propriamente humano é a todo instante negociado, insinuado, confrontado, aconchegado, garantido, por não-humanos? Que política se pode levar a cabo ainda sem se aprender a viver em um mundo de contágio? Seria o caso de uma política em direção inversa, quero dizer, não dos indivíduos para os grupos, as classes, os programas políticos, mas dos indivíduos para seus pequenos processos de negociação? Não do particular para o geral, mas do particular para a particularização. Talvez a indústria seja precisamente isto.

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