domingo, 22 de junho de 2014

Karl Kraus (1931) de Walter Benjamin

Dedicado a Gustav Glück

I. Omnihumano
Como tudo torna-se alto.
Palavras em Versos II

Más notícias enviaram o vendendor de jornais que gritante com os cabelos arrepiados e com uma folha nas mãos agitando por aqui se dispersa e distribui um jornal cheio de guerra e pestilência, de gritos mortíferos e dor, de tormentos causados por fogo e inundações. Um jornal neste sentido, neste significado que tem a palavra em Shakespeare, é a “Tocha”. Repleta de denúncia, estremecimento, veneno e combustão advinda do mundus intelligibilis. O ódio, com o qual ela persegue o fervilhante e ilimitado gênero da impressa, é mais do quê um ódio moral, um vital, assim como aquele que o Urano jogou sobre uma estirpe de pirralhos degenerados que de seu própio sêmen vieram. O nome “opnião pública” já é àquele jornal uma abominação. Opiniões são coisas privadas. A esfera pública tem um interesse apenas em julgamentos. Ela é uma julgadora ou é nenhuma outra. Mas exatamente isso é o sentido da opinião pública que a imprensa produz, fazer a esfera pública incapaz de julgar, sugetivamente a conferir a postura de irresponsável, de desinformada. De fato, o quê são mesmo as informações mais precisas dos jornais diários em comparação com a arrepiante acribia qual  a “Tocha” assiduamente emprega na representação de fatos jurídicos, línguísticos e políticos? Da opinião pública aquele jornal não precisa ocupar-se. Pois, as notícias sanguinolentas desse “jornal” desafiam o julgamento daquela; e com uma fervorosa insistência contra nada ou ninguém mais do quê contra a própria imprensa.


Um ódio, como Kraus o lançou sobre os jornalistas, nunca pode ser pura e simplesmente fundando naquilo que estes fazem – tão reprovável como se queira. Esse ódio tem de ter suas razões no seu próprio ser, ainda que a este, como de costume, seja tão oposto ou afim. De fato, contudo, neste caso ambos estão corretos. A representação mais recente do jornalista caracteriza-lo sem demora em sua primeira frase enquanto “um ser humano que possue pouco interesse por si próprio e sua existência, como em geral pela mera existência das coisas, e ao contrário persegue as coisas só em suas releações, sobretudo lá onde essas se confrontam em acontecimentos – e que neste momento ele torna-se integrado, essencial e vivo”. O quê por fim fica retido nas mãos com esta frase, não é nada mais do quê o negativo da imagem de Kraus. De fato: quem teria mostrado um interesse tão palpitante por si próprio e sua existência do quê ele, que nunca se livra deste tema, e um interesse tão atento pela mera existência das coisas, pela origem delas, quem aquele confrontar-se do acotecimento com o evento dado, a testemunha ocular ou com a câmera transporta a um claro desepero senão ele? Por fim, ele condensou toda sua energia na luta contra o falatório ou a conversa vazia que é a expressão línguística da arbitrariedade, com a qual o jornalismo se lança à dominação das coisas.

Tradução continua...

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Fim da Festa



"Vamo beber, pois é festa! Hoje é copa, amanhã feriado, depois é sexta, e sexta é sexta, depois já é fim-de-semana mesmo, e depois o Brasil jogo de novo na copa!!!...."


Esse tipo de declaração, típica do ser humano, mais ainda do brasileiro, revela muito quem realmente somos. E o tom de aparente brincadeira ou piada através do qual ela é dita escamoteia mais ainda nossa indulgente maneira conosco mesmos em não querer nos encarar o pior lado de nossa cultura: o da preguiça, da falta de vontade, da nosso estar-perdido, do desperdício de energia com futilidades etc.

Eu não quero parecer um dito "careta", apenas acho que os analtecedores do lema "a vida é uma (constante) festa" são tão canalhas, improdutivos, negativos quanto àqueles que prezam pela ordem, pelos bons constumes, família, moral e outras medidas disciplinatórias.

Me parece que tal negação de qualquer ação no sentido de "vamos beber" ou de um "relaxar" cético teve uma última versão nos anos de 1960 e 70 no ocidente de uma liberalização, contracultura e um tipo de protesto a favor da rejuvenização da cultura; aquele do Rock'n Roll, dos cabelos longos, dos Hippies, dos misticismos anacronizadores do new age, das drogas como meio de alterar a percepação ou ainda como meio de aumento da creatividade. Tudo isso foi bom e cumpriu seu papel na liberalização da sociedade ocidental de muitas morais; mas aquilo que era rejuvenecedor, envelheceu, saiu de contexto, virou uma fantasmagoria de uma irresponsabilidade generalizada, do desespero diante de si próprio, do avassalador ímpeto de individualidade original.

Como eu disse, eu não quero ser o "careta". O quê realmente me espanta e pertuba é como esse tom de festa nos arrasta para um nada sem se tornar um niilismo, ou seja, sem se transformar em uma força realmente destrutiva (se tratando de cultura), nem produtiva (no sentido de um eficaz forma de negação trabalhada e optimizada em forma de arte, ciência ou de uma nova moral). Todo o potencial desta negação nunca se torna uma outra afirmação, nunca alcança outros corações, não mede forças com deuses ou gigantes, nem protesta contra instituição alguma, muito menos sacode seres paralisados em suas aprisionadoras vidas. se torna apenas uma privatização do protesto, o quê é pior do quê a resignação - essa pela menos nos liberta do medo de morrer.

Nós gritamos, protestamos e xingamos contra nossos trabalhos, e nos agarramos em teorias e discursos envelhecidos para isso, porque na verdade não enxergamos um potencial verdadeiro no trabalho para além de obrigação de manter um corpo sem vida sobrevivendo e também para além de riqueza pessoal; não são nossos trabalhos que são ruins, nós que não nos acostumamos com a idéia de trabalho, nem o transformamos em favor de nossas necessidades e sonhos; o problema não são os trabalhos e profissões, mas sim nós mesmos que no fim só esperamos pelas sextas-feira, pelos (já numerosos) feriados, pelas férias, pela aposentadoria e no fim pelo último feriado ou dia livre da morte. Me parece que tudo isso é um desejo bem profundo de viver como em uma côrte do absolutismo no século 17, ou algo parecido; criticamos muitas vezes a desiguldade de riquezas e trabalhos porque na verdade queríamos ser o senhor que é servido; mais urgente seria acabar com essas ilusões que predizem aquilo, que deve ser alcançado, como um tipo de calmaria e luxo vegetante.

Nossa recusa em viver é que faz nossos trabalhos tornaram-se torturas; como dito, no fim das contas nem sabemos fazer de toda essa negação da vida um niilismo espumando no canto da boca que seria na verdade uma grande vontade de viver, de crer em deus ou qualquer coisa parecida. A cultura do protesto e da recusa passou e teve sua importância, entretanto permaneceu uma caricatura da mesma em formas da indústria cultural que apenas proclamam o elogio do prazer e ainda despido de qualquer fundo de arte. Basta apenas "sair" - essa palavra já é uma aberração em si: sair de si, da própria vida medíocre, do próprio tédio? - a noite em um sábado e verás isso. Festas de boates, show de música sertaneja pop (a música sertaneja em sua versão caipira era justamente um elogio da vida simples e tediosa na roça, e ao contrário, nenhum tipo de elogio ao prazer vazio, da "festa" da cidade grande, e do espáculo da vida etc), o funk carioca (que muita gente hoje comicamente até tenta comparar com o Rock dos anos 60 e 70) ou mesmo os mais variados programas de entretenimento na TV; todos essas formas possuem algo daquela recusa, mas esvaziadas de qualquer verdadeira crítica da cultura, sem uma frase sequer sobre o ser humano, só tornaram-se apenas o passatempo, talvez através de alguma provocação, e nunca se tornarão arte, nem nunca um dia tentaram explodir esse mundo.

Antes que eu me faça mal entendido, o problema não é o prazer ou a festa, o problema está em nossas petrificadas imagens e formas dos mesmos. E o simples atravasar de um enunciado como "hoje é festa, bora beber" só é possível porque nossas noções de prazer e festa já estão em demasia fixadas em determinadas práticas e enunciados; se fossem um prazer inédito e indizível serião já poesia, pois se esforçariam em dizer justamente aquilo que não está fixado. Aquelas práticas e enunciados estão aí, extremamente fáceis de serem apenas aceitos, consumidos, reeditados e reditos, são ainda tão eficcazes que eles nos sugerem um espetáculo da vida, uma alegria, uma suspensão do tempo, uma festa! Mas para aqueles como nós, para quem Le Printemps adorable a perdu son odeur!, esses fixados e revisitados prazeres são falsos, inocentes e ineficazes; nós buscamos doses mais fortes, prazeres ainda desconhecidos, outra temporalidade que supera qualquer sugestiva efemeridade ou a mais artificial dualidade entre tempo do trabalho e o dito tempo livre da festa e do hobby - a busca de uma real e eficaz continuidade!. Eu sonho com o dia que apenas teremos sonhos não apenas sonhados, mas sim transformados em tarefas e planos de ação, que apenas faremos coisas por estarmos possessos por idéias e visões, muito além, muito mais produtivo e prazeroso do quê qualquer trabalho e festa.





Última cena do filme "O Leopardo" - exatamente depois do baile, voltando pra casa.


***


Pra terminar um frisante poema do artilheiro lírico - obrigado Sr. José pelo poema:



La Voix


Mon berceau s'adossait à la bibliothèque,

Babel sombre, où roman, science, fabliau,

Tout, la cendre latine et la poussière grecque,

Se mêlaient. J'était haut comme un in-folio.

Deux voix me parlaient. L'une, insidieuse et ferme,

Disait: «La Terre est un gâteau plein de douceur;

Je puis (et ton plaisir serait alors sans terme!)

Te faire un appétit d'une égale grosseur.»

Et l'autre: «Viens! oh! viens voyager dans les rêves,

Au delà du possible, au delà du connu!»

Et celle-là chantait comme le vent des grèves,

Fantôme vagissant, on ne sait d'où venu,

Qui caresse l'oreille et cependant l'effraie.

Je te répondis: «Oui! douce voix!» C'est d'alors

Que date ce qu'on peut, hélas! nommer ma plaie

Et ma fatalité. Derrière les décors

De l'existence immense, au plus noir de l'abîme,

Je vois distinctement des mondes singuliers,

Et, de ma clairvoyance extatique victime,

Je traîne des serpents qui mordent mes souliers.

Et c'est depuis ce temps que, pareil aux prophètes,

J'aime si tendrement le désert et la mer;

Que je ris dans les deuils et pleure dans les fêtes,

Et trouve un goût suave au vin le plus amer;

Que je prends très souvent les faits pour des mensonges,

Et que, les yeux au ciel, je tombe dans des trous.

Mais la voix me console et dit: «Garde tes songes:

Les sages n'en ont pas d'aussi beaux que les fous!»

C.B.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Meu último sonho: Leitor

Este post me parecia inefavelmente necessário; mas só perpetuará e aumentará meu desespero.

Depois da leitura de um artigo no New York Rewiew of Books de Tim Parks - um cara que escreve uns artigos interessantes sobre leitura e escrita - chamado Reading: The Struggle tive que escrever algo, pois seu desespero enquanto a crescente impossibilidade da leitura nestes tempos acelerados, principalmente de grandes romances,  muito corresponde ao meu; daí fiz a sua reflexão minha (nota: "sua" ou "seu" em português sempre corresponde à terceira pessoa do singular e, diferentemente do confuso uso cotidiano da mesma língua, não deveria ser confudido ou trocado com "tua" ou "teu" - aqui apenas uma tentativa de melhorar e discernir os usos de língua para evitar "mal-entendidos").

Quanto mais rápido tudo fica, mais ferramentas de internet (do tipo read later, evernote, drop box etc), mais catálogos de bibliotecas online - quais eu praticamente diariamente exploro - , quanto mais o Amazon quase todos os livros contemporâneos a venda põe, quanto mais livros são digitalizados, quanto mais eReaders, Pads... quanto mais e mais, quanto mais a técnica computacional aumenta e constantemente se supera, torna-se proporcionalmente mais difícil de ler.

Eu não sou um daqueles saudosistas que acham que tudo do e no passado era melhor; eu pelo contrário sou muito adepto deste nosso tempo. Hoje posso falar a todos instante com meus pais e amigos via Skype, Facebook e WhatsApp; pela internet me torno muito mais atualizados sobre novos lançamentos de livros; posso também ler nybooks.com e outros periódicos de vários países, resolvo minha matrícula de doutorado quase exclusivamente apenas por internet.... Internet gera uma comunicação real, sim bem real, mais real do quê aquela lá fora que vejo pela janela de pessoas com as quais eu sinceramente não quero me comunicar, embora só fazer trocas funcoinais do tipo compra e venda. Internet é o fenômeno ainda mais incompreendido desta geração, e mais sensacional! Ela seria muito mais se não fosse um simples e árduo fato: que aquela comunicação que a internet mais destrói e impossibilita, e talvez a mais absoluta seja, a da leitura.

Hoje em dia quem quer ler J. Joyce, G. Rosa, D. F. Wallace, T. Mann, ou mesmo mestres da curta poesia lírica como Hölderlin, Baudelaire e cia, ou ainda mestres da curta prosa aforística como Schlegel, Nietzsche, Benjamin e outros - principlamente em língua original de cada um destes - sofrerá muito. Até que alguém me prove o contrário, eu acredito que esse mundo - de 10 anos para cá - não é mais feito para leitura como antes. Ou não é mais possível ler, ou ainda temos de reinventar a leitura e em consquência disto a própria literatura - como já dizia Schlegel que a nova grande obra moderna deveria ser algo entre a bíblia e o jornal, ou seja, atemporal e ao mesmo tempo extremamente transitória, uma fixação permanente como leis sagradas e dogmas e ao mesmo tempo registros provisórios de digno devir do "ainda estar pensando sobre", como último e único (sagrado) livro que exige incotáveis repetidas leituras e semi-leituras, "passar de olhos" sobre o texto, e leituras transversais que já determinam a sentença de morte de cada "anti-obra" e já buscam sedentas a próxima leitura.

Enfim, todos os aspectos do livro sagrado e do periódico que Schlegel via (no tempo dele por volta de 1800) sintetizados e realizados na forma do romance moderno; este depois de Joyce, G. Rosa, T. Mann e outros, e por último depois de D. F. Wallace talvez esteja em crise. Eu não sou um daqueles que amam proclamar crises - ainda que aparentemente e ironicamente já estamos em crise desde séculos -, eu preferiria constatar a estabilidade e força da arte escrita; entretanto, uma crise talvez seja um mal necessário para sacudir um determino período da história e o despertar de sua apatia do Stillstand.


***







O Fausto não quer mais abandonar seu escritório.






















Tive de traçar planos para ler o Infite Jest do Wallace, cuja a metade ainda não alcancei. Algo não me parece muito certo quando se tem de traçar planos antes de ler um grande romance: se com Infinite Jest já parece difícil, a Divina Comédia ou os epos homéricos em forma não prosaica seriam então impossíveis nos dias de hojes.

Quando eu era criança e jogava video game e não podia ao mesmo tempo ler um livro. Me sinto hoje frequentemente como que se eu estivesse "jogando video game" quando estou diante do computador - ainda que escrevendo esse texto sem forma como forma de resistência.

Uma técnica revolucionária na reeducação para um verdadeira leitura acríbica é a tradução, talvez hoje a melhor e mais eficaz forma de se ler, entretanto a mais árdua e trabalhosa.

Uma grande vantagem do computador diante do medium impresso é a possiblidade de se carregar vários dicionários. Eu, que utilizo vários dicionários, não gostaria de carregar uma pilha de calhamaços. Deste modo, eu deveria fazer de um computador apenas um dicionários digital sem mais alguma outra aplicação - ainda estou tentando...

Será que depois de um doutorado, uma forma de estudos que pressupõe e exige leituras extremamente mecanizadas, utilitaristas, objetivas, será possível se libertar de si mesmo enquanto doutorando e se reinventar enquanto leitor e ao mesmo tempo idealizar um tipo de leitura profissional?  - ciência da leitura.

Sonho com livros e leituras de clássicos, a única, sinceramente, hoje possível, profana salvação do indivíduo.

Todo tipo de entusiasmo pela e através da leitura me parece algo como a experiência de ouvir uma música atonal de Schönberg, que sempre em si mesma se perde, desharmoniza e ainda relutante se reinventa - uma leitura sem centro e sequência que cata textos ou apenas pedaços dos mesmos aqui e ali como aquelas notas.

Creio eu quem hoje em dia se decide pela leitura como modo de vida na verdade escolhe o caminho de uma asquese ainda sem nome da recusa do mundo, uma dura disciplina do desacelerar-se - quase como uma meditação.

Talvez Schlegel tinha razão: a provisória solução são fragmentos, ensaios, rascunhos, teorias e histórias da literatura mundial, um periódico que ser obra de arte e a revolucionária escrita dos cadernos de anotações enquanto anti-publicações, tudo isso enquanto a obra de arte do futuro não surge.

Além do mais, outro tipo de leitura se perde cada vez mais: a da voz, não silenciosa, do Recitar e Declamar - com o desespero e sonho de uma outra leitura optimizada aumenta minha fixação pela página, pelo manuscrito, pela letra, por outro lado proporcionalmente meu interesse por algo não menos sensacional e fascinante, que é a voz, diminui.

Me parece que que não há volta... nunca cometeremos um suicídio digital. Entretanto, muita coisa desparece, nosso comportamento muda, nos aceleremos para coisas falsas e esquecemos de nos desacelerar para tudo aquilo que outrora tanto prezávamos. Este tempo, no qual vivemos, é marailhovoso, ao contrário do que a maioria pensa, precisamos compreendê-lo, dominá-lo e reagir com a mesma força com a qual nossas obras da técnica nos desafiam.

sábado, 24 de maio de 2014

Reflexões sobre o estudo da literatura, núm. I

Confesso ter me sentido lisonjeado quando um grande amigo, em um lugar geograficamente "impossível" para um encontro e uma longa conversa, diz se referindo a minha decisão de estudar literatura: "é preciso ter coragem para estudar literatura". Ele mais disse que algo sobre mim ou minha decisão; o disse se referindo ao tamanho da tarefa.


Literatura: apenas histórias e ficções. Uma das negações da realidade mais poderosas ou uma reinvenção da mesma; uma tarefa que mais parece uma pena - como dizia Roland Barthes, quando ele se decidiu por não mais dar aulas sobre literatura e sim escrever a própria literatura: "Sísifos está cansado...." Estudar literatura é desta forma: sentir-se um sísifo cansado; algo muito fácil e corriqueiro. 

Pois todos vivem com a certeza de que as grandes obras da  literatura são quase como livros sagrados, entretanto não lidos; ou que sempre sucumbem à realidade devido não à impotência das mesmas, mas sim a nossa incompetência e falta da concentração enquanto leitor. Outro martírio dos estudos da literatura é a bem-vinda, mas às vezes como um prisão de passado, é a constante referência aos clássicos dos séculos anteriores, e na melhor das sortes do tempo, "apenas" de décadas passadas; as vezes eu tenho a impressão que tornar-se um leitor de clássicos implica automática ser incapaz de litetura contemporânea, do mesmo passado ou saindo justamente agora. É um sonho de qualquer grande leitor, ver um novo gênio poético ou literário do século nascer e talvez um dia poder vê-lo, encontrá-lo ou até mesmo falar com o mesmo; mas quem alimenta essa esperança geralmente se frusta, porque na selva de novos livros só são lançados livros, mas nenhuma grande sensação; a solução para o caso de entender melhor a literatura atual seria ler menos clássicos, daí se acostuma ao atual. Essa é uma das aporias de ser leitor, se decidir por clássicos ou ler o atual.


Uma outra aporia, que na verdade mereceria só para si um outro post, é a incapacidade generalizada de se estudar literatura e com a própria mão de leitor escrever a própria literatura. Borges era um grande leitor e conhecedor de literatura mundial, também conhecido como grande escritor. Entretanto, ele nunca escreveu uma obra extensa, e suas formas literárias resumen-se em poemas, contos e ensaios - eu também o tenho como um grande, talvez o maior Latino junto com o único G. Rosa, mas basta ler suas Preleções nos EUA reunidas sob o nome This Craft of Verse para se perceber uma sútil decepção do Borges por não ter escrito uma obra mais longa, nem seu Epos moderno gauchês em versos. Talvez o último grande escritor e conhecedor de literatura, além do já dito Borges, foi Thomas Mann; mas eu vou fugir dessa conversa agora, só a recomeço quando eu já tiver lido mais deste.




Enfim, eu nunca compreendi como se estuda literatura sem uma filosofia (cética) da mesma e apenas à base do entusiasmo; nao entendo como se pode estudar literatura sem um estudo profundo do que é e como funciona a leitura; também nao entendo como é possível estudar literatura sem pensar como seria, ao invés de estudar, estar lá fora fazendo qualquer coisa e nao lendo; nao entendo como se pode estudar literatura a amando muito além do mero entusiasmo... nao entendo muitas coisas em mim que me proponho a estudar literatura, mas no fundo eu sei porque....




Porque seria algo sério estudar apenas "historinhas", algo que em boa parte é só uma diversão, parte da indústria cultural do entretenimento (contraparte do trabalho)? Sem mais meias palavras e desrespeitando todo e qualquer desentendimento e despindo-se de qualquer explicação: porque estudar literatura é estudar o talvez maior fundamento da cultura (na maioria das suas formas históricas). 

Sem mencionar o tamanho da tarefa e do árduo trabalho que é, por exemplo, ler Shakespeare, Dante ou Homero (digo isso embora não pensando em adaptações em Prosa do tipo LP&M!). Na verdade, ler tais clássicos e outros mais é uma tarefa herculânea pelo simples fato - a cada novo dia tenho mais certeza e ciência disso - porque não sabemos ler, porque lemos instrumentalmente e através de conhecimentos de língua de semi-analfabetos. Na academia perpetuamos essa incompetência através de um sobrecarrega de leitura, sem que nenhum dos mestres, grandes professores e intelectuais nos tenha ensinado a ler - nem ouso comentar sobre a escola, onde devíamos ter aprendido a ler. Ler, na medida do possível no original,  ler fazendo perguntas, com atenção, em voz alta, rápido, lento, filologicamente ou de maneira talmúdica (José, tua terminologia eu substituo por 'filológica'!), criticamente e recensória, também de maneira teórica e ainda de maneira estratégica, mímica ou ainda aprendiz. Alguém deveria escrever uma grande filosofia da leitura, esse fenômeno que sem exageros se aproxima do divino, do sonho de decifrar e compreender tudo. Algo, talvez mais próximo de uma dessa filosofia em falta, que conheço, que inclusive estou lendo, é o livro do talvez último canonista - escritor de um grande cânon literário - é o americano Harold Bloom How to read and Why; embora a forma como o livro é organizada, segundo exemplo de títtulos clássicos divididos segundo classes literárias, me decepcinou um pouco. Acho que se deveria escrever sobre a leitura de modo puramente ensaística e fragmentária e ainda reducindo os exemplos de leituras de livros, menos ainda os classificando, como Bloom o faz. Enfim, o livro do Bloom, que curiosamente um Prof. na Universidade de Yale,  dá bons conselhos, como se afastar da linguagem, das discussões e formas de leituras acadêmicas, para assim se tornar um leitor de verdade.

***

Literatura como estudo da cultura em princípio nada mais realiza do que investigar e explicar uma sistema de linguagem artística, representacoes de idéias (que muito se repetem) e a medialidade das literatura enquanto texto e livro - com certeza há mais fenomenos específicos da literatura, eu só queria citar três grandes.

Literatura às vezes não se deixa explicar com perguntas realísticas do tipo: "Pra quê ler literautra?", "Qual função ela ocupa na sociedade?"; quando ela é justamente a negação disso tudo ou uma ironia enquanto negação da negação primeira, também conhecida como realidade. Eu não hesitaria em dizer: Literatura é um sistema em si e para si. 

Por outro lado a literatura é bem-de-consumo com belas capas coloridas e imagens, subalterna a estrutura de novidades, listas do melhores e best sellers, constituindo calendários de publicações das casas editoriais; enfim ela também tem seu lado de mercadoria e o escritor, por mais erudito e classicista que ele hoje possa ser, nao será lido e muito menos poderá viver só de escrever caso ele não compreenda sua própria literatura também como produto. Um livro é só papel, mas também pode ser obra de arte e quase um evangelho em um contexto individual. Inclusive, essa dualidade do caráter do livro enquanto mercadoria e obra, espírito e materialidade, é muito pouco estudada entre os estudiosos da literatura; pena que quando alguém se dedica a tal investigação pode haver o risco do investigador, se tratando de mercadoria, ser um marxista, ou seja, um cara que normalmente não entende nada de literatura e apenas a pode interpretá-la como meio de ideologias... melhor então não mexer com tal investigação, se desde o princípio literatura só é isso.


***

Literatura é um sistema em si e para si. Uma prova disso pode-se dar jogando aqui aleatoriamente alguns conceitos de poética, retórica, estética, filologia, teoria da narração e teoria das klasses literárias (evito deliberadamente a palavra 'gênero'):

Dáctilo, Alexandrino, Hexametro, Parabase, Oxymoron, Iambo, Troqeus, Diaskeuasis, o Belo, o Feio, o Asco, Rapsodo, Epos, comédia tardia, poema sáfico, prosódia, ritmo, cadencia... Canzone, Soneto, Romanzo, Trauerspiel, maneira, tom, Madrigal, Coplas,  Cantiga de amigo, Sátira, emendatio, recensio, romance romantico, perspectiva, Mimesis, heterodiegético, homodiegético, composicao, ciclo, narracao, prosa, prosa poética, extradiegético.... 

O sistema da literatura é um sistema histórico, complexo e com os próprios conceitos que na verdade muito poucos conhecem, menor ainda o contigente do que os conhecem bem. Só esses nomes e outros mais, mesmo que vagos e mera indicacoes, já sao uma justificativa em si para um estudo da literatura como a manutencao e tradicao de um sistema histórico (mais velho até do que o da filosofia) ou de um conhecimento específico.

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Só para terminar, um aforisma irresponsável: Literatura é mais poderosa do que filosofias,  a dita ciência da história, que a própria ciência da literatura e a pobre realidade; tal verdade a gente ainda só não conhece ou não entendeu; e eu não sei explicar essa minha convicção.

domingo, 18 de maio de 2014

Sobre representação e responsabilidade

Desajeitados, uma legião de adolescentes de todas as idades – alguns já de idade avançada – aumenta o tom de voz exigindo o mundo correto e bem administrado, o mundo em que todo e qualquer conflito resulta da maldade, da leniência e indolência de alguns indivíduos, o mundo em que “basta fazer o correto” para “chegar lá”. No sistema representativo aquela incontornável experiência da negação, do radical confronto com quem quer algo diferente e se dispõe a argumentar por isto, encontra-se mediada por uma infinidade de aparatos; estes adolescentes não sabem viver na negação. Parece-lhes insuportável que seu modo de vida possa não ser a regra. Creio que qualquer reflexão sobre a falência da ideia de representação deve também buscar relacionar alguns dos lugares comuns de nossos dias – “nenhum político presta”, “nenhum partido me representa”, “direita e esquerda é tudo igual” – com a experiência específica de viver sob um regime representativo, em que toda participação política é concentrada na promessa de que bastam algumas decisões, periodicamente agendadas, basta votar.

A representação é problemática não apenas porque é incapaz de se “abrir às demandas da sociedade”. Não me interessa o ponto de vista gerencial, a questão não é ouvir os “administrados” para melhor propor “políticas públicas”. Não que toda administração pretenda ser a-política. Exatamente o contrário. Administrar pode ser uma expressão da face cooperativa do político, em que se reconhece na esfera pública um lugar do comum. Parece-me, entretanto, que a cooperação surge como o anverso da negociação, ambas mergulhadas em um mundo conflituoso e ambas buscando instaurar alguma convivência em um jogo de forças incessante. Não sobram lugares neutros. Nenhum lugar onde se possa tomar decisões apenas “técnicas”. A separação entre normativo e positivo é ela mesma prescritiva e, portanto, política. A questão é, neste sentido, compreender como a representação se traduz em uma experiência privativa (no sentido em que Arendt refletiu), que se transforma na negação mesma da política. Nesta sociedade tornada uma mera “coleção de indivíduos”, as pessoas apenas levam sua vida “como deve ser”, como “fazem todos”: estudar – trabalhar – consumir; casa – trabalho – cinema, shopping, festa, etc. Quase tudo é privado, os equipamentos públicos são essencialmente meios de circulação, o que sobra de comum tende a se tornar lazer (também consumo), talvez a única convivência ainda possível para aqueles apenas capazes de enxergar no outro a ocasião do gozo.

Não se trata de acusar a vacuidade de “nossa vida contemporânea”, mas de perceber uma escolha determinada que o sistema representativo parece sempre propor. Trocamos as dificuldade e incertezas da vida política – quantas vezes você já ouviu “não gosto de política”? –, abrindo mão de qualquer intervenção direta, por uma vida concentrada nos “planos individuais”, nos “projetos de vida”, talvez se diga que trocamos a política por uma criação estética de nós mesmos. Há muitos caminhos a se pensar a partir daqui. Uma estética que reconheça no desejo seu verdadeiro lugar poderá, por exemplo, desestabilizar o projeto individual ao colocar, através pluralidade das pulsões, a impossibilidade mesma da identidade pela qual este indivíduo se constrói. Deleuze tem muito a nos ensinar. De minha parte, gostaria de apenas de apontar para algo mais simples, que é quase uma exortação.

A representação falha porque é incapaz de propor uma noção de responsabilidade que seja comunitária. Não por acaso a verdadeira política flui pelos movimentos sociais, em que aqueles que não se ajustam à política da maioria são empurrados para um tipo novo de solidariedade. Quem vive a negação como uma negação de si mesmo aprendeu muito rápido a se solidarizar e explorar os interstícios do sistema representativo para construir seu espaço. É neles que penso quando falo em responsabilidade – e também, evidentemente, no fato de que a representação nos torna “adolescentes”. Há de fato algo como uma “tomada de consciência”, do que faz parte a construção de uma narrativa coletiva, mas que tem algo mais. Tem a descoberta de que se furtar à política é de algum modo colaborar com o que ela produz de pior. Estudar o mundo em que se vive toma a forma de um imperativo ético. Não basta esbravejar “revolta”. Falar mais alto é uma falácia.


O sistema representativo está falido não apenas como mundo em que os partidos políticos medeiam os interesses reais, ele está, ainda muito mais, como mundo em que se pode ir de casa para o trabalho e depois ao shopping sem se preocupar com as consequências da situação em que se vive. Eu falo em “situação” e isto é central: a responsabilidade é de todos e cada um, mas as coisas “dão errado” não porque somos culpados (ninguém é culpado), mas porque toda ação se desdobra em um contexto hiperdeterminado, no qual nunca se pode dizer com certeza qual é a causa e qual é o efeito.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Máscaras, Disfarces e Pseudônimos

"Am meisten hat ein jeder mit seiner Antithese zu tun... Antinomie der Bildung" F.S.

"Ideale sind erreichbar, denn sie beruhen alle auf Synthesis und Widerspruch, Schweben und Schwanken" F. S.



Máscaras, pseudônimos  e disfarces: ser um só e sempre o mesmo nunca é suficiente. Maquiagens, perucas, próteses e costumes para esconder a feia natureza. Lenço sobre o rosto e chapéu cobrindo os olhos para o crime perfeito. Distúrbios de caráter e dupla personalidade para evitar o encontro consigo mesmo. O grande cineasta alemão Werner Herzog disse uma vez se interessar profundamente pelo fenômeno humano de vestir máscaras. De fato, isso é algo misterioso. Me pergunto se estamos tentando de fato nos livrarmos da prisão da individualidade ou se somos mímicos já há séculos, pois deuses e espíritos outrora sempre se revelavam de forma icógnita, disfarçada ou incorporada em seres da natureza.

É incrível como estamos o tempo todo tentando nos impôr diante de outros e diante de nós mesmo nos superar ou esquecer quem fomos. Melhor seria ser uma comunidade em si ou ser consequente com nossa inconsequente personalidade. Quem sempre repete a mesma opnião e preconceitos e preza por um comportamente consequente é porque não tem creatividade para ser outro.


Para aqueles que pensam que escrever é a via mais direta e sincera à personalidade do escritor, eu digo: eu escrevo para me idealizar, para me fantasiar, para ser quem eu nunca poderia ser, para destruir o tédio do dia-a-dia de viver sempre comigo mesmo. Escrevendo eu sou mais eu e vários ao mesmo tempo; me dissipo e me perdo através de páginas, mesmo daquelas que apenas sonhei, porém nunca escrevi. 

Não acredite em que é seguro demais de si; estamos o tempo todo mentido, fingindo e escondendo quem realmente somos.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Cotidiano e Luta de Classes

Nos telejornais na cidade os manifestantes são atacados, como sempre, por "perderem a razão" e "apelar para a violência". Com os votos de sempre para que os "manifestantes pacíficos" sejam respeitados e etc.

É interessante como na retórica da imprensa os problemas urbanos são abstraídos de toda a sua dimensão concreta, parece que não falamos de uma relação social conflituosa em que um sistema favorece alguns (por exemplo, donos do transporte "público") em detrimento dos trabalhadores segregados do entorno. Parece que estamos lidando com um "fenômeno da natureza", uma "situação muito difícil", na qual todos supostamente estariam engajados em "resolver". Os trabalhadores ao queimarem o ônibus lembram os míticos luditas, e talvez aí esteja precisamente seu caráter perturbador... o fato de que eles "contaminam" a arena política que se pretende domesticada e saneada.

"Em geral, somente quando sai para a rua, o conflito de classes se transforma em guerra aberta, principalmente porque o braço coercitivo do capital está instalado fora dos muros da unidade produtiva. O que significa que confrontações violentas, quando acontecem, não se dão geralmente entre capital e trabalho. Não é o capital, mas o Estado, que conduz o conflito de classes quando ele rompe as barreiras e assume uma forma mais violenta. O poder armado do capital geralmente permanece nos bastidores; e, quando se faz sentir como força coercitiva pessoal e direta, a dominação de classe aparece disfarçada como um Estado "autônomo" e "neutro"" (Meiksins Wood, Democracia contra Capitalismo, p.47).

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2014/03/17/interna_cidadesdf,417806/apos-confronto-com-manifestantes-tropa-de-choque-detem-23-pessoas.shtml