sábado, 24 de maio de 2014

Reflexões sobre o estudo da literatura, núm. I

Confesso ter me sentido lisonjeado quando um grande amigo, em um lugar geograficamente "impossível" para um encontro e uma longa conversa, diz se referindo a minha decisão de estudar literatura: "é preciso ter coragem para estudar literatura". Ele mais disse que algo sobre mim ou minha decisão; o disse se referindo ao tamanho da tarefa.


Literatura: apenas histórias e ficções. Uma das negações da realidade mais poderosas ou uma reinvenção da mesma; uma tarefa que mais parece uma pena - como dizia Roland Barthes, quando ele se decidiu por não mais dar aulas sobre literatura e sim escrever a própria literatura: "Sísifos está cansado...." Estudar literatura é desta forma: sentir-se um sísifo cansado; algo muito fácil e corriqueiro. 

Pois todos vivem com a certeza de que as grandes obras da  literatura são quase como livros sagrados, entretanto não lidos; ou que sempre sucumbem à realidade devido não à impotência das mesmas, mas sim a nossa incompetência e falta da concentração enquanto leitor. Outro martírio dos estudos da literatura é a bem-vinda, mas às vezes como um prisão de passado, é a constante referência aos clássicos dos séculos anteriores, e na melhor das sortes do tempo, "apenas" de décadas passadas; as vezes eu tenho a impressão que tornar-se um leitor de clássicos implica automática ser incapaz de litetura contemporânea, do mesmo passado ou saindo justamente agora. É um sonho de qualquer grande leitor, ver um novo gênio poético ou literário do século nascer e talvez um dia poder vê-lo, encontrá-lo ou até mesmo falar com o mesmo; mas quem alimenta essa esperança geralmente se frusta, porque na selva de novos livros só são lançados livros, mas nenhuma grande sensação; a solução para o caso de entender melhor a literatura atual seria ler menos clássicos, daí se acostuma ao atual. Essa é uma das aporias de ser leitor, se decidir por clássicos ou ler o atual.


Uma outra aporia, que na verdade mereceria só para si um outro post, é a incapacidade generalizada de se estudar literatura e com a própria mão de leitor escrever a própria literatura. Borges era um grande leitor e conhecedor de literatura mundial, também conhecido como grande escritor. Entretanto, ele nunca escreveu uma obra extensa, e suas formas literárias resumen-se em poemas, contos e ensaios - eu também o tenho como um grande, talvez o maior Latino junto com o único G. Rosa, mas basta ler suas Preleções nos EUA reunidas sob o nome This Craft of Verse para se perceber uma sútil decepção do Borges por não ter escrito uma obra mais longa, nem seu Epos moderno gauchês em versos. Talvez o último grande escritor e conhecedor de literatura, além do já dito Borges, foi Thomas Mann; mas eu vou fugir dessa conversa agora, só a recomeço quando eu já tiver lido mais deste.




Enfim, eu nunca compreendi como se estuda literatura sem uma filosofia (cética) da mesma e apenas à base do entusiasmo; nao entendo como se pode estudar literatura sem um estudo profundo do que é e como funciona a leitura; também nao entendo como é possível estudar literatura sem pensar como seria, ao invés de estudar, estar lá fora fazendo qualquer coisa e nao lendo; nao entendo como se pode estudar literatura a amando muito além do mero entusiasmo... nao entendo muitas coisas em mim que me proponho a estudar literatura, mas no fundo eu sei porque....




Porque seria algo sério estudar apenas "historinhas", algo que em boa parte é só uma diversão, parte da indústria cultural do entretenimento (contraparte do trabalho)? Sem mais meias palavras e desrespeitando todo e qualquer desentendimento e despindo-se de qualquer explicação: porque estudar literatura é estudar o talvez maior fundamento da cultura (na maioria das suas formas históricas). 

Sem mencionar o tamanho da tarefa e do árduo trabalho que é, por exemplo, ler Shakespeare, Dante ou Homero (digo isso embora não pensando em adaptações em Prosa do tipo LP&M!). Na verdade, ler tais clássicos e outros mais é uma tarefa herculânea pelo simples fato - a cada novo dia tenho mais certeza e ciência disso - porque não sabemos ler, porque lemos instrumentalmente e através de conhecimentos de língua de semi-analfabetos. Na academia perpetuamos essa incompetência através de um sobrecarrega de leitura, sem que nenhum dos mestres, grandes professores e intelectuais nos tenha ensinado a ler - nem ouso comentar sobre a escola, onde devíamos ter aprendido a ler. Ler, na medida do possível no original,  ler fazendo perguntas, com atenção, em voz alta, rápido, lento, filologicamente ou de maneira talmúdica (José, tua terminologia eu substituo por 'filológica'!), criticamente e recensória, também de maneira teórica e ainda de maneira estratégica, mímica ou ainda aprendiz. Alguém deveria escrever uma grande filosofia da leitura, esse fenômeno que sem exageros se aproxima do divino, do sonho de decifrar e compreender tudo. Algo, talvez mais próximo de uma dessa filosofia em falta, que conheço, que inclusive estou lendo, é o livro do talvez último canonista - escritor de um grande cânon literário - é o americano Harold Bloom How to read and Why; embora a forma como o livro é organizada, segundo exemplo de títtulos clássicos divididos segundo classes literárias, me decepcinou um pouco. Acho que se deveria escrever sobre a leitura de modo puramente ensaística e fragmentária e ainda reducindo os exemplos de leituras de livros, menos ainda os classificando, como Bloom o faz. Enfim, o livro do Bloom, que curiosamente um Prof. na Universidade de Yale,  dá bons conselhos, como se afastar da linguagem, das discussões e formas de leituras acadêmicas, para assim se tornar um leitor de verdade.

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Literatura como estudo da cultura em princípio nada mais realiza do que investigar e explicar uma sistema de linguagem artística, representacoes de idéias (que muito se repetem) e a medialidade das literatura enquanto texto e livro - com certeza há mais fenomenos específicos da literatura, eu só queria citar três grandes.

Literatura às vezes não se deixa explicar com perguntas realísticas do tipo: "Pra quê ler literautra?", "Qual função ela ocupa na sociedade?"; quando ela é justamente a negação disso tudo ou uma ironia enquanto negação da negação primeira, também conhecida como realidade. Eu não hesitaria em dizer: Literatura é um sistema em si e para si. 

Por outro lado a literatura é bem-de-consumo com belas capas coloridas e imagens, subalterna a estrutura de novidades, listas do melhores e best sellers, constituindo calendários de publicações das casas editoriais; enfim ela também tem seu lado de mercadoria e o escritor, por mais erudito e classicista que ele hoje possa ser, nao será lido e muito menos poderá viver só de escrever caso ele não compreenda sua própria literatura também como produto. Um livro é só papel, mas também pode ser obra de arte e quase um evangelho em um contexto individual. Inclusive, essa dualidade do caráter do livro enquanto mercadoria e obra, espírito e materialidade, é muito pouco estudada entre os estudiosos da literatura; pena que quando alguém se dedica a tal investigação pode haver o risco do investigador, se tratando de mercadoria, ser um marxista, ou seja, um cara que normalmente não entende nada de literatura e apenas a pode interpretá-la como meio de ideologias... melhor então não mexer com tal investigação, se desde o princípio literatura só é isso.


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Literatura é um sistema em si e para si. Uma prova disso pode-se dar jogando aqui aleatoriamente alguns conceitos de poética, retórica, estética, filologia, teoria da narração e teoria das klasses literárias (evito deliberadamente a palavra 'gênero'):

Dáctilo, Alexandrino, Hexametro, Parabase, Oxymoron, Iambo, Troqeus, Diaskeuasis, o Belo, o Feio, o Asco, Rapsodo, Epos, comédia tardia, poema sáfico, prosódia, ritmo, cadencia... Canzone, Soneto, Romanzo, Trauerspiel, maneira, tom, Madrigal, Coplas,  Cantiga de amigo, Sátira, emendatio, recensio, romance romantico, perspectiva, Mimesis, heterodiegético, homodiegético, composicao, ciclo, narracao, prosa, prosa poética, extradiegético.... 

O sistema da literatura é um sistema histórico, complexo e com os próprios conceitos que na verdade muito poucos conhecem, menor ainda o contigente do que os conhecem bem. Só esses nomes e outros mais, mesmo que vagos e mera indicacoes, já sao uma justificativa em si para um estudo da literatura como a manutencao e tradicao de um sistema histórico (mais velho até do que o da filosofia) ou de um conhecimento específico.

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Só para terminar, um aforisma irresponsável: Literatura é mais poderosa do que filosofias,  a dita ciência da história, que a própria ciência da literatura e a pobre realidade; tal verdade a gente ainda só não conhece ou não entendeu; e eu não sei explicar essa minha convicção.

2 comentários:

  1. Vários pontos de seu texto podem ser inflamados a partir do enclave: fazer literatura não é mais possível.
    Disso sobrevém: o ultraje de se escrever literatura contemporaneamente, bem como suas exceções. Ler literatura se torna tão mais importante como escrever literatura se torna um absurdo. A literatura assim se empodera enquanto em vias de se extinguir - por isso pode-se pintar, esculpir e fazer filmes, pois a pintura a escultura e o cinema ultrapassaram a impossibilidade da literatura, são possíveis, etc. Sobre as ciências não se é necessário escrever: perderam há muito a capacidade de "precipitar o instante"; capacidade ainda latente na defunta arte de escrever. Seu cadáver, melhor, seu esqueleto ainda trabalha na ceifa do presente. E aqui talvez esteja a operação filosófica. Literatura é filosofia.
    Os tormentos de se escrever qualquer coisa hoje é apenas uma ressonância da gravidade de se apresentar como escritor de literatura.
    Bom, quando se diz sobre a coragem de se estudar literatura, acho que se relaciona à urgência da leitura. É preciso ter coragem para se tornar um leitor. Estudar literatura hoje é o trabalho sísifico de se ler, "ler o que nunca foi escrito".

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    1. Sim, José Bürgerschreck. Entretanto, eu nunca diria nunca. Literatura está ficando cada vez mais impossível porque em boa parte principalmente o cinema, e sua versão mais barata, a televisão, se apropriaram de boa parte do campo antes apenas da literatura.

      Embora a tarefa pareça ser sempre mais impossível para isso que servem clássicos (antes de se tornarem de fato clássicos). Clássicos possuem uma própria temporalidade e reorganizam os tempos históricos em volta de si. Clássicos são normalmente reconhecidos por suas capacidades criadoras, algo parecido com a tal da genialidade; contudo, penso eu que um clássico consiste também em uma força destruidora ou reformadora do atual contexto literário e estético. Talvez, um dia um novo clássico pulverizará a atual litetura-mercadoria; para isso seria uma outra condição tão fundamental como a força destruidora e reconstituidora do clássico, talvez ainda mais rara do quê genialidades individuais: um público de leitores reais, potencializados....

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