domingo, 18 de maio de 2014

Sobre representação e responsabilidade

Desajeitados, uma legião de adolescentes de todas as idades – alguns já de idade avançada – aumenta o tom de voz exigindo o mundo correto e bem administrado, o mundo em que todo e qualquer conflito resulta da maldade, da leniência e indolência de alguns indivíduos, o mundo em que “basta fazer o correto” para “chegar lá”. No sistema representativo aquela incontornável experiência da negação, do radical confronto com quem quer algo diferente e se dispõe a argumentar por isto, encontra-se mediada por uma infinidade de aparatos; estes adolescentes não sabem viver na negação. Parece-lhes insuportável que seu modo de vida possa não ser a regra. Creio que qualquer reflexão sobre a falência da ideia de representação deve também buscar relacionar alguns dos lugares comuns de nossos dias – “nenhum político presta”, “nenhum partido me representa”, “direita e esquerda é tudo igual” – com a experiência específica de viver sob um regime representativo, em que toda participação política é concentrada na promessa de que bastam algumas decisões, periodicamente agendadas, basta votar.

A representação é problemática não apenas porque é incapaz de se “abrir às demandas da sociedade”. Não me interessa o ponto de vista gerencial, a questão não é ouvir os “administrados” para melhor propor “políticas públicas”. Não que toda administração pretenda ser a-política. Exatamente o contrário. Administrar pode ser uma expressão da face cooperativa do político, em que se reconhece na esfera pública um lugar do comum. Parece-me, entretanto, que a cooperação surge como o anverso da negociação, ambas mergulhadas em um mundo conflituoso e ambas buscando instaurar alguma convivência em um jogo de forças incessante. Não sobram lugares neutros. Nenhum lugar onde se possa tomar decisões apenas “técnicas”. A separação entre normativo e positivo é ela mesma prescritiva e, portanto, política. A questão é, neste sentido, compreender como a representação se traduz em uma experiência privativa (no sentido em que Arendt refletiu), que se transforma na negação mesma da política. Nesta sociedade tornada uma mera “coleção de indivíduos”, as pessoas apenas levam sua vida “como deve ser”, como “fazem todos”: estudar – trabalhar – consumir; casa – trabalho – cinema, shopping, festa, etc. Quase tudo é privado, os equipamentos públicos são essencialmente meios de circulação, o que sobra de comum tende a se tornar lazer (também consumo), talvez a única convivência ainda possível para aqueles apenas capazes de enxergar no outro a ocasião do gozo.

Não se trata de acusar a vacuidade de “nossa vida contemporânea”, mas de perceber uma escolha determinada que o sistema representativo parece sempre propor. Trocamos as dificuldade e incertezas da vida política – quantas vezes você já ouviu “não gosto de política”? –, abrindo mão de qualquer intervenção direta, por uma vida concentrada nos “planos individuais”, nos “projetos de vida”, talvez se diga que trocamos a política por uma criação estética de nós mesmos. Há muitos caminhos a se pensar a partir daqui. Uma estética que reconheça no desejo seu verdadeiro lugar poderá, por exemplo, desestabilizar o projeto individual ao colocar, através pluralidade das pulsões, a impossibilidade mesma da identidade pela qual este indivíduo se constrói. Deleuze tem muito a nos ensinar. De minha parte, gostaria de apenas de apontar para algo mais simples, que é quase uma exortação.

A representação falha porque é incapaz de propor uma noção de responsabilidade que seja comunitária. Não por acaso a verdadeira política flui pelos movimentos sociais, em que aqueles que não se ajustam à política da maioria são empurrados para um tipo novo de solidariedade. Quem vive a negação como uma negação de si mesmo aprendeu muito rápido a se solidarizar e explorar os interstícios do sistema representativo para construir seu espaço. É neles que penso quando falo em responsabilidade – e também, evidentemente, no fato de que a representação nos torna “adolescentes”. Há de fato algo como uma “tomada de consciência”, do que faz parte a construção de uma narrativa coletiva, mas que tem algo mais. Tem a descoberta de que se furtar à política é de algum modo colaborar com o que ela produz de pior. Estudar o mundo em que se vive toma a forma de um imperativo ético. Não basta esbravejar “revolta”. Falar mais alto é uma falácia.


O sistema representativo está falido não apenas como mundo em que os partidos políticos medeiam os interesses reais, ele está, ainda muito mais, como mundo em que se pode ir de casa para o trabalho e depois ao shopping sem se preocupar com as consequências da situação em que se vive. Eu falo em “situação” e isto é central: a responsabilidade é de todos e cada um, mas as coisas “dão errado” não porque somos culpados (ninguém é culpado), mas porque toda ação se desdobra em um contexto hiperdeterminado, no qual nunca se pode dizer com certeza qual é a causa e qual é o efeito.

5 comentários:

  1. Kaio meu caro, tocou em pontos importantes, especialmente no que diz respeito afalha da representação visto que essa não visa propor uma noção de responsabilidade que seja comunitária.






    Esses dias quase introduzi um assunto para discussão, na verdade mais que isso, para ver seu ponto de vista e, com esse texto vejo por bem lhe indagar.

    Li que Arendt inicialmente acata a concepção metafísica de que o pensamento é uma saída
    – e não subterfúgio – do mundo. Sendo que, para ela, isso nada teria a ver com fuga do mundo e dos seus problemas, até porque esse tipo de interpretação entraria em contradição com as suas concepções em filosofia política. Pois bem, dessa forma tal saída do mundo seria, então, a capacidade de romper com o cotidiano,uma descontinuidade própria da vida humana, uma
    parada, uma re-flexão, o ato de voltar-se sobre os acontecimentos a fim de dar significados a eles.

    Assim um dos problemas que envolvem essa discussão não seria que as pessoas pensam cada vez menos e usam cliches gnosiológicos para explicar (não é essa intenção) seu mundo, que na verdade é simplesmente pegar uma noção de algo que é planejada, não refletir sobre ela a adotar e contrapor uma noção das "coisas" que também não é sua, mas que por um momento por conta da noção que você adotou acaba por contrapor essa "outra"?

    Mais ou menos o que aconteceu com o Eichmann que vivia em um mundo de de contínuos clichês. Assim, problema do pensar hoje não é que as pessoas não buscam a atividade referida como um rompimento com o mundo, buscando apenas se adequar ao que elas estão inseridas?

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  3. Bem... esperei um pouco, antes de comentar, para ter certeza que essa seria mesmo minha opinião. E a mesma permaneceu.

    Concordo talvez com tudo que dissestes, porém não vejo o sistema representativo como universalmente falido; talvez sim no Brasil, assim como talvez todo o Estado brasileiro. Eu percebo aqui na Alemanha algo talvez absolutamente contrário: o representacionismo, ainda que com imperfeições, é a salvação da Alemanha. Só estudo literatura e filosofia, mas não filsofia política, minha observação é puramente de observações pessoais de algumas experiências daqui.

    Não sei se vocês andam acompanhando o quase "fim" da união européia - e espero que não cheguemos lá. Eu vejo que a representação política aqui salva a política de algumas idéias marginalizadas que vem de uma massa - felizmente não muito grande, porém muito pertubadora. Se houvesse uma democracia direta aqui haveria possivelmente muito mais xenofobia na Alemanha e na Europa. Pela mesma razão, vejo na Alemanha as ditas mídias pequenas e independentes como as más e perigosas, ao contrário do Brasil. Qualquer brecha no sistema político, assim como naquele de mídia, serve para camuflados fascistas, antieuropeistas ou anticosmopolistas e radicais de Igreja. Te dou dois exemplos:

    Para a última eleição do parlamento europeu foi eliminada a cláusula de uma porcetagem mínima de 3% do votos válidos para que um partido possa ser de fato eleito. E o quê aconteceu? Um partido alemão xenófobo, ainda que eles neguem, outros os chamam de fascistas, pôde mandar um deputado para o parlamento europeu. Sem contar outros partidos do tipo "causa dos animais" que puderam mandar um ou mais candidatos. Só para resumir minha posição: sim, a imigração na Euroap é um problema grandíssimo e penso que deve haver sim alguma forma de controle. Entretanto, tais caras problematização a situação através de argumentos puramente xenófobos; daí eles já assinaram para mim a sentenção de inutilidade no discurso político. Umas conversas fiadas do tipo: há estrangeiros demais na Alemanha, eles tomam nossos trabalhos (uma mentira absoluta: o imigrante africano ou de qualquer outro lugar mesmo nunca concorrerá com o trabalhador alemão, geralmente muito melhor qualificado) e o mínimo de solidariedade com povos em países emguerra com a Síria, claro, sempre está ausente neste discursos. Enfim: não valem nada estes discursos e ficam muito bem como marginalizados - seria melhor ainda se inexistentes.

    Na democracia direta da "grande" Suiça houve um referendo para votar a limitação do contingente de imigrantes, acho que aconteceu neste ano ainda. Não me lembro bem, mas creio eu que coisa de 17 mil votantes, um contigente baixíssimo, decidiu o referendo por completo com um "sim" a barreira de imigrantes. Não sei quais foram os desenvolvimentos posteriores dessa decisão. Fato é que os cidadãos contra o limite de imigração não acreditaram que tamanha estupidez política fosse possívele por isso não compareceram em grande número na votação; sim, esse estupidez é quase sempre possível até nos ditos melhores países do mundo, pois, os estúpidos, oportunistas e preconceituosos costumam utlizar tais mecanismo de democracia direta.

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  4. Continuação...

    Enfim, muitos talvez não gostem de ler isso: mas o dito povo é burro também; a turba é perigosa - lembremos dos justiceiros em praça pública no Brasil fazendo justiça com as próprias mãos. Em vários momentos a massa é movida apenas por medos e inseguranças, não por razão, ou seja, o simplismo de quê seguir a vontade do povo seria o caminho me parece muito ingênuo.

    E um outra verdade dos exemplos europeus. Existe a idealização de que todo cidadão deve ser apto a usar própria razão para julgar autonomamente. Isso é bom enquanto idealização, quando se tenta fazê-la realidade não funciona, porque a maioria dos europeus na verdade não são autônomos, cosmopolistas e racionais o suficiente. A grande maioria sequer vai votar (o voto na alemanha e para o parlamento europeu não é obrigatório).

    Como comentou uma vez Isaiah Berlin sobre o contratualismo e o poder popular do Rousseau: ele abriu uma caixa de pandora; o povo enquanto soberano serve para legitimar qualquer tipo de política, seja ela até fascista mesmo. Então, me parece que povo e razão nem sempre coexistem.

    Enfim, para terminar. concordo com você que o sistema representativo gera um tipo de lacuna e promove um certo tipo de irresponsabilidade, entretanto ele também PODE evitar que elementos perigosos também tenham voz. Me parece que a solução não está nas ruas - a massa é mais passiva do que ela acredita mesmo indo às ruas, ainda que isso no fim tenha um pequeno valor positivo - e que o problema não é o sistema de representação. Eu não saberia dizer onde o problema está exatamente, mas talvez seja na própria idéia de Estado e Lei que a gente sempre copiou ao invés de inventar algo que se adeque mais a nossa realidade.

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  5. Eu excluí meu primeiro comentário pq eu não o havia corrigido e não encontrei uma opção para editá-lo. Mas era o mesmo que depois postei.

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