sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Humanos não são essencialmente diferentes de pedaços de madeira e percevejos





O mais relevante é a noção de pobreza. Todo humanismo vai dizer que humanos são “mais que...”, que “não são meramente...”, que são “irredutíveis...”, “incomensuráveis...”, todos eles encontram algum tesouro recôndito na “alma” humana, um negócio, um conteúdo qualquer que vale a pena ser afirmado e defendido a qualquer custo. É a riqueza dos conteúdos; e o humanismo é uma filosofia para homens ricos. Quero saber de uma filosofia despossuída, formal, feita para ambientes extremos, onde não se pode viver confortavelmente. Feita para movimentar-se vagarosamente como um andarilho, olhando de perto as coisas e as deixando perder o encanto... É preciso andar, pois de carro se consume muito: ali é adição, é “mais”, cada vez mais. Olhadas de perto as coisas são interessantes por muito pouco tempo; não tardam a nos jogar de volta ao tédio.

O humanismo não apenas me impacienta, ele me entedia. Ele é desfile e vitrine, é gôndola de supermercado. Não estou dizendo que a sociedade do consuma é falsa (não acho que seja); trata-se de uma estrutura de fixação em conteúdos, de busca de riqueza (também a riqueza “interior”) para esconder e apagar algo de insuportável: nosso desvalor e futilidade, a negatividade democrática do universo – o fato de que nele tudo é um mesmo e nada é necessário para além do ponto em que for capaz de negociar uma necessidade (existir é resistir; ontologia é a política do universo).

 Jamais o humanismo poderá entregar aquilo que promete: um humano essencialmente valoroso. Mas ele vai tentar... E como tem tentado! Sempre do mesmo modo: comprometimento intransigente com um conteúdo elevado à condição de “fundamental” e que vai autorizar qualquer ato; o humanismo é afirmativo e nada se pode afirmar sem um gesto destrutivo. Todo fazer é um tomar, roubar, apropriar... O humanismo é a ideologia das éticas afirmativas, as éticas da violência permitida e justificada (autodefesa, bem maior, felicidade – palavras grandiloquentes que todo humanista diz com veneração).

Talvez seja possível pensar em um pós-humanismo dos desesperados – como gosto de ver a ética negativa de Julio Cabrera. Dizer a contingência e reatividade dos valores não é abrir mão deles, mas sim radicalizar a noção de responsabilidade. Não é que não se possa matar o outro porque ele seja um valor em si mesmo (ou porque a vida seja um valor absoluto), mas porque nenhum de nós possui “mais valor”, porque nenhuma hierarquia tem razão de ser para além da força com que se impõe. Mas a força é uma razão sem razão, como qualquer afirmação. Portanto “todo aquele que age é absolutamente responsável”; e, não obstante, não pode não agir. Uma vez que aqui estamos, não podemos não agir: generalização da imoralidade – nosso mundo jamais poderá ser composto por pagãos e cristãos, todos somos pagãos; e o pai de família, o home de bem, que “faz tudo pelos seus”, precisamente porque faz tudo, é o símbolo máximo de nossa imoralidade.


Post-scriptum sentimental:

Texto escrito predominantemente ao som de “Sober” do álbum Undertow do Tool; e em resposta a minha tristeza com a conversão política de um antigo amigo.

Encontro-me em um estado de extremo cansaço com todo e qualquer humanismo. Já não espero que algo de bom possa sair de qualquer discurso que construa para humanos um cantinho especial dentro do universo. Concordo com Brassier, muitas ideias que antes me pareciam absurdas – o reducionismo de Churchland, a ontologia inóspita de Quine, as filosofias naturalistas – hoje me parecem bastante atraentes. Ao mesmo tempo em que desconfio das razões das reservas a este tipo de pensamento. Encontrei um Heidegger formalista e preocupado com o método, um que a tradição fez questão de esquecer. Sim. Somos “matéria morta” e nada além disto. E não tenho encontrado objeções a esta afirmação em outras pessoas além daquelas que ainda acham que matéria é uma “bolinha pequenina e dura”.

5 comentários:

  1. Parece-me que o humanismo tem, entre outros, um correlato político especificamente nefasto. Trata-se da noção de indivíduo. Presenciei um "debate" no qual a principal questão girava em torno da violência (em recentes manifestações no Rio). Tratava-se de justificar e/ou desqualificar a violência contra indivíduos. A questão do indivíduo, tal como parece ser colocada, não pertence ao cenário político - e isto não significa nada além de que a violência é injustificável do ponto de vista individual (contra ou por indivíduos).
    Mas a questão da individualidade - seu mito, que talvez seja a pulsão originária no humanismo; não? - é uma espécie de armadura utilizada quando se adentra no cenário político. Uma armadura contra a autêntica política. Deve-se preservar, acima de tudo, algo que acredito ser o indivíduo - e que na verdade é o nome genérico dos inquestionáveis privilégios particulares, atribuídos por cada um, a si próprio. A crítica ao humanismo pode partir do reconhecimento do caráter não-humano do coletivo - mas daí, se depara com um terrível limiar, com possíveis terríveis escolhas. Ou a crítica do humanismo parte do niilismo.

    Por fim. Acho que existe uma "falsidade" inerente à sociedade de consumo. Na verdade ela é mera "falsidade". Mas como alguém aqui já disse outra vez: são tais máscaras que atualmente podem reivindicar seus direitos.

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  2. O indivíduo é dos principais eventos nisto que chamei de "estrutura de fixação em conteúdos". A questão é a sua absolutização. O valor absoluto que supostamente tem a vida, na verdade é o valor absoluto do indivíduo: o direito de autodefesa, o direito da propriedade, etc. Quando um valor é fixado e retirado de qualquer escala comparativa, ele é retirado do cenário político, ele não pode jamais ser negociado. É bem o que o Agamben diz, o absoluto direito à vida é o direito à vida nua, a vida que merece ser mantida sob qualquer condição; o objeto perfeito para a chantagem do estado hobbesiano.

    Seria possível um passo de "indivíduos" para "particulares"? Eles portam exatamente a noção de máscara, de situações indexais. O indivíduo subjaz ao social, ao político, à negociação, ele é uma substância metafísica. A questão seria decompor o indivíduo, desestabilizá-lo. Acho que o que encontramos após isto seria uma população de particulares (e o indivíduo seria não outra coisa que uma aliança provisória de particulares que dispõe de poder suficiente para se impor). Mas ainda preciso trabalhar na noção lógica de particular (o problema dos indiscerníveis e do substrato das relações me são ainda particularmente difíceis de entender). Não sei o que vai resultar disto.

    Este texto foi quase um desabafo; não tem nada de novo em relação às coisas que vários já tinham dito antes. É só o que eu gostaria de dizer a um amigo, mas com certeza não vou poder.

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  3. Desvencilhando-se do humanismo falado no texto, não seria justo considerar a fome e o cuidado parental como marcas que definem o homem não como homem, mas como animal bem peculiar? A fome e a eterna luta por saciá-la, a fome da miséria, marcadora do limiar entre o que é humano e o que é um sistema, bem como o cuidado parental, aparato de garantia de sobrevivência da prole, um tanto quanto peculiar também nessa espécie. Não seria este um ponto de partida para um humanismo menos enfeitado, mais "real"?

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  4. Gostei desta forma como colocastes, a fome e o cuidado como "marcas" e não como base. Precisamente porque a marca também é contingente, também é algo que precisa ser feito a cada vez. Acho que dois caminhos são trilhados ao pós-humanismo, o primeiro é hermenêutico e consiste em formalizar categorias cada vez menos encarnadas em conteúdos individuais, cada vez mais falamos sobre "facticidade" e "situação", menos sobre "pessoas". O outro é naturalista, consiste em apagar a noção de espécie como uma razão necessária e suficiente para um trabalho de definição. É cada vez falar menos em espécie e mais "especiação". Neste sentido, o "cuidado com a prole" possui "base natural", mas isto não quer dizer ser necessário, quer dizer algo como a definição de trajetórias de devir, de limiares que precisam ser ultrapassados, mas o que poderia vir disto é muito diferente a cada vez.

    Dito isto, o cuidado com a prole não poderia ser justificativa para qualquer predileção ética. Talvez o moralismo deste texto seja extremamente radical e kantiano. Ele conclama algo como uma atitude ética levada às últimas consequências e um apagamento de qualquer hierarquia. Nenhuma imposição é moralmente justificada, pois todas elas carecem de base afirmativa, mas elas possuem "marca", elas visam fazer algo, fazer devir algo, mas um algo aberto a negociação. Uma escala de valores, sim, "anti-vitalista", também (pois nega o direita à afirmação), mas intransigentemente democrática.

    O mais "real" penso poderia ser dito simplesmente mais "adequado" (verdade = adequação). Devemos parar de falar em espécie como fundamento de comportamentos naturais porque esta afirmação é falsa. A investigação ontológica subordina a ética, mas apenas porque antes a ontologia mesmo já se tornou política (uma pequena bagunça no ordenamento filosófico que ainda pretendo escrever em um post).

    Abraço.

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