quinta-feira, 10 de outubro de 2013

“Por que será que o Che tem esse perigoso costume de seguir sempre renascendo?”


Essa pergunta de repente contagiou minha mente, pouco depois de esbarrar nela, meio sem querer, como sempre haveria de ocorrer com o próprio Che. O que é o renascer de Che? Por que sempre voltar a ele? Que quer dizer compreender Che?

Homem de muitas paixões”, ante o qual a objetividade treme. Em poucos lugares o esforço de neutralidade é tão deslocado, eu diria. É muito fácil, irritantemente fácil, ser objetivo e neutro aqui. Dois lados digladiam-se: “sonhador” versus “facínora”; apare um pouco as arestas extremas, tempere com um ou dois conceitos mais gerais, se puder faça uma ou duas comparações, e pronto: a história de Che aí encadernada, pode tirar xerox. Além de neutra e objetiva, limpa e profilática. Inócua e morta, evidentemente.

Mas ele renasce. E daí o mistério deste homem. Ele não se conforma às categorias. Teima e insiste contra elas, irrompe nos espaços em branco, faz congelar e quebrar a letra morta. Che devém guerrilheiro em qualquer texto.

É que talvez a ideia mesma de compreensão “objetiva” seja um aliado muito frágil pra enfrentar este homem. Ou talvez seja algo mais simples, que compreender não seja neutralizar, mas sim restaurar o possível, oferecer a Che novas oportunidades; e o que ele tem de miraculoso é a capacidade de tomá-las para si. De fazer dos interstícios de qualquer sistema portais para fluxos incontroláveis.

Este homem precisa ser exterminado, esquecido, apagado...”; “nada nele é confiável e domesticável...”; “ele é o inimigo, o adversário”. E então uma imagem, nada mais é necessário. Algo de forte, algo de belo, algo de assustadoramente arrebatador: parece que nele qualquer sonho é primavera, que o real pode ser moldado, feito por nossas mãos... Não é apenas uma estranha confiança o que ele inspira, ele não é um líder, não nos convoca a meramente segui-lo. Há que tomar parte, que partilhar, que fazer florescer, pois a guerrilha é um organismo de autômatos – ela destrói enquanto contamina e empreende enquanto liberta. Che faz cada um de nós devir um pouco Che. É perigoso, muito perigoso este homem.

Em nenhum lugar a objetividade fácil e escolar mostra-se tão deslocada, tão inadequada, tão medrosa quanto frente a Ernesto Che Guevara. Não reagir a este homem só pode ser sinal de já estar morto, pelo menos como historiador. Mas o que significa ser Che? Não nos enganemos; matar para destruir a ordem ou matar para mantê-la ainda é matar. Não se pode ser revolucionário ou conservador sem ser imoral. Mas o quanto é pálida e mesquinha a figura de qualquer conservador quando colocado ao lado de Che! Que há neste homem que faz a política parecer novamente possível? É isto o que o faz renascer? Nesta pergunta começamos talvez a compreender, mas o que seria respondê-la? Não sei...

2 comentários:

  1. Não vou responder a pergunta. Apenas tentarei apresentar novas questões a partir de considerações sobre suas histórias. O Che indivíduo morreu em La Higuera, uma morte que reconfigurou sua história. Mas aquela vida já havia se inserido em configurações semelhantes à produzida pelo soldado boliviano Mario Téran: No Quartel de Moncada, na Sierra Maestra, no Congo e por fim, na Bolívia. Esta parte da vida não é menos importante, mas se relaciona muito pouco com seus renascimentos.
    Depois apareceu sua imagem - a fotografia de Alberto Korda - inseriu o personagem Che em novos circuitos: como símbolo (enquanto exemplo) e como ícone (a beleza do instantâneo de Korda). Sua história se resumiu ao instante casual: a palmeira ao fundo, maio de 1968, Fitzpatrick (significativamente gravurista de temas mitológicos), a Time etc. O Nome dado à fotografia não poderia ser mais adequado a tal história: "Guerrilheiro Heroico". Trata-se do heroísmo instantâneo, enrijecido, do esquecimento. Até a palmeira desapareceu, imagine o solo, a vegetação, as casas, as armas, as pessoas de Moncada, da Sierra, de La Higuera!! A imagem se adequou de forma emblemática ao emblema esvaziado. Se tornou estampa, banner, logo, mercadoria. Que fabuloso miasma das revoluções-contrarrevoluções de nossos dias. Se fosse possível atravessar a cortina de fumaça do sacrifício de La Higuera e do anátema à Mamon, restaria apenas o limiar, a própria travessia, o cenário histórico onde as histórias de Che podem ser outras, reconfiguradas pelos devires. Sua história poderia começar na "objetividade" daquele instantâneo.
    A imagem produziu múltiplas e divergentes histórias. O que ela porta? O heroísmo anterior a sua história, seu esvaziamento posterior, o descontrole atual sobre sua posse, sobre seu significado, materializado em um instante, tornado configuração de cores que marcaram inicialmente o papel, depois magnetizaram superfícies sólidas e agora eletronicamente em semicondutores carregados/descarregados. O que vai além (em direção ao histórico) desta imagem? Sua exemplar abertura, seus (anteriores), atuais e potenciais (futuros) renascimentos, reconfigurações.

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