quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Nota para um futuro estudo: Marx como filósofo do processo


O ser é o afirmado, o feito, o montado; devir é o não-ser resgatando seus direitos.


Desfazendo a metáfora. O desmanchar no ar de tudo o que é sólido não é uma metáfora; trata-se do significado literal de sólido, o permanente, que ele seja fotográfico, instantâneo. Quando olhado mais de perto, é a impermanência, o movimento, o que constitui o sentido mesmo de tudo o que há.

Capital como energia; reificação como processo; mercado como séries inacabadas e problemáticas (Deleuze!). O mundo visto de perto é matéria - e nada mais. Não é que pequenas coisinhas duras, entretanto, sejam a a verdadeira essência do real. Tudo é matéria, mas matéria é índice para um problema, é uma expressão metonímica (nossa forma de fazer mereologia).

Desmanchar não é cessar de ser, é intercambiar, trocar de lugar, devir outro do que se era; todo sólido é uma montagem, ele é feito de peças, de outras negociações. O fundamental é que ele é feito - isto é materialismo; a partir de planos de montagem que são eles mesmos outras peças de montar - por isto ele é histórico. (Expurgando todo platonismo, talvez de volta ao Timeu: física das ideias!!!)

Nada escapa à impermanência, nada constrói para si uma esfera incomensurável dentro do universo (não porque haja uma lei natural que proíba, mas porque nada tem poder suficiente para tanto). Ideias não são sui generis à matéria; o cérebro não é sui generis aos pensamentos - apenas com muita sutileza se nega isto. Mas o devir é sempre mais sutil: o infinitamente pequeno se impõe como relevante.

Como ser marxista sendo filósofo do processo? Será preciso deixar a dialética? Confronto-me com a possibilidade e necessidade de deixar de lado as sínteses, as soluções. O que devém são sobreposições; coisas inacabadas e sem justificação; o universo se desmancha sem qualquer preocupação em dar razões. Não há sínteses para as contradições do capitalismo. Precisamente porque ele não é um todo (um cenário, uma paisagem, um quadro, um eixo cartesiano). Ele não é nada além das próprias contradições, a afirmação decadente de um campo de possibilidades a cada vez mais rico (e isto se pode dizer de qualquer série de sólidos).

O filósofo do processo precisará conversar com a mesa de Marx. Aquela mesa atrevida e de ideias grotescas que nos interpela no começo do Capital; aquela mesa que nos dá a ver as formas da síntese, as duas grandes soluções por detrás das diversas negações: valor-de-uso e valor-de-troca. Como são feitas as duas formas do valor? Como descobrir nelas a metonímia, não a metáfora, do capital? Como dar voz ao excesso, ao não-solucionado, ao que Marx não queria e não podia ouvir de sua mesa? Trata-se de dialogar com mesas, de deixar-se capturar na estranha lógica da referência através da qual a linguagem nos instala na situação. Captura real, concreta, material, nunca simbólica: estou falando das incontáveis objetivações que a mesa produz no corpo, que a ideia-coisa, ao se levantar do livro (outra coisa), induz no cérebro. Qual o materialismo histórico da leitura do Capital? Como devir marxista? Esta tarefa é urgente.


3 comentários:

  1. Texto programático.

    Uma dialética materialista do devir, cujo caráter histórico seja constituído por intercâmbios, por permutações, procederia pela imobilidade do pensamento contra o “mobilismo” que só aceitaria o dado inerte, na tese ou na síntese. As coisas são os conceitos. “Instante” como uma noção acerca da complexidade do processo, por exemplo.

    O “todo sólido é uma montagem”: parece ser um dos centros do texto. O todo não é certamente uma paisagem: talvez seja sim um cenário. Tese, síntese e antítese que trocam de lugar, que se imobilizam... Não por acaso um pensador do materialismo escreve sobre dialética imóvel...

    Não existem mais coisas que não sejam mercadorias. Seus processos que devem ser conquistados. A vulgaridade da mesa de Marx é ideal: a sua mesa é mercadoria; neste seu inalienável modo de ser reside a dinâmica para, dos textos que repousaram sobre ela. Sua tradução (aos nossos dias) ideal. Produzir conceitos que portem as danças das mesas. Múltiplas danças: dessa vez, nada abstratas.

    "Um inferno se debate na alma da mercadoria" WB.

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  2. Fiquei pensando nisto: “imobilidade do pensamento contra o “mobilismo” que só aceitaria o dado inerte”. Seria o problema a interpretação do movimento enquanto “mero movimento”? Quero dizer, o movimento no espaço newtoniano, em que um corpo idêntico a si mesmo vai de um ponto a outro. Há algo como uma unidade inabalada e inalterada, enquanto se movimento o corpo é ele mesmo em cada um dos instantes e não perde nada com o movimento. Claro que penso no paradoxo de Zenão, e poderia dizer simplesmente: se é o mesmo, então ele é o mesmo a cada instante, ou dividiríamos o movimento indefinidamente ou afirmamos que o corpo está na verdade parado a cada instante. O movimento seria relativo à inserção de uma referência, uma diferença espacial. Daí a importância de se garantir um espaço absoluto para manter as coisas se movendo na física newtoniana. Mas acho que ainda não é desta imobilidade que falamos. Ela é mais radical, pois pressupõe que um corpo só pode se movimentar tornando-se outro do que se era, movimento também é devir; idêntico a si mesmo o corpo só pode permanecer em abstrato, quando dissecado em seu devir múltiplo ele se mostra como uma unidade em devir, diríamos uma trajetória de alianças, um canal de transmissões de devir, em que o passado objetiva o futuro, enquanto o futuro sempre trai o passado, sempre atualiza muito menos do que era possível (mas não faz desaparecer o possível, que permanece real no virtual). Daí a dizer que uma entidade atual não tem contemporâneos, ela só tem passado e futuro (estou falando de Whitehead, mas acho Deleuze vai na mesma direção quando fala em Cronos e Aeon).

    Enquanto seja um movimento constituído de negações eu me sinto bastante tentado a afirmá-lo como uma dialética. Mas, uma vez que o não-ser precede o ser, que me parece uma figura pálida e provisória, e o ser jamais pode solucionar a negatividade, que está sempre em excesso, então com toda razão este movimento poderia ser dito contra-dialético. Mas talvez isto force a barra. Eu não havia pensado “imobilidade do corpo (ou do dado)” contra “mobilidade do pensamento”; isto me chamou a atenção pra outros problemas. Parece que esparramamos a imobilidade por todos os lados, e agora todo movimento será uma sobreposição, um devir parcial, uma captura de pedaços com vista a um todo problemático (que só persiste enquanto seus pedaços o suportarem), mas ontologicamente autônomo (quero dizer, o todo resulta da interação causal não-linear das partes, mas ele atravessou um limiar de possibilidades, possui características que a soma das partes não possui). Neste sentido minha teoria do teatro foi pobre, pois imaginei o cenário como um espaço absoluto, aquilo em que os atores atuam, mas no qual eles nada fazem. Talvez seja o caso de pensar o cenário como um todo imóvel, um lugar de sobreposições, portanto o passado de todo ator... não sei...

    E então às coisas! Que toda coisa seja mercadoria é a metáfora do capital, seus processos é que são metonímicos. Daí a “mesa do Marx”. Ela é vulgar, mas porque foi vulgarizada. O ponto é que à captura-mercadoria corresponde uma captura-metáfora, que nada mais é que um exercício de redução: todos os seus átomos serão corporificação de trabalho humano abstrato. Tudo torna-se redutível a tudo uma vez efetuada a dupla captura. Mas a metonímia é insurgente, pois ela insinua as partes não reduzidas, permite buscar outros todos, todos não sistematizados no capital. O ponto da mesa de Marx é que isto é feito o tempo todo, que as duas figuras do valor só se sustentam à base de uma redução permanente no atual, é que o capital precisa ser sistematizado em cada coisa, que ele só é uma estrutura enquanto seja capaz de se colocar em jogo a cada vez. Fiquei pensando na figura do colecionador... mas também o instrumento quebrado em Heidegger... quando a captura falha, o que resta é simplesmente tudo...

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  3. E está tudo nesta frase: "Um inferno se debate na alma da mercadoria"! A quebra da captura, o aparato despedaçado, a traição das alianças... a mesa de pé, retirando ideias da cabeça, ideias de coisa-outra, mais que mercadoria, mais que trabalho, "mais-que...", excesso... o inferno! A impossibilidade de toda redução, a obrigatoriedade de ter que devir pra se movimentar, mas tornar-se sempre outro do que se era!

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