sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Uma república de particulares


Em resposta ao texto de Kaio, quando ele pergunta "Que democracia podem os particulares?" e à proposta do amigo José para que inventássemos uma nova etimologia para República, ocorreu-me que um desafio à visão poderia ser um bom ensaio aqui. Trata-se de olhar para esta foto e não nomeá-la, primeiramente, e deixá-la ser entre este fundo de indiscernibilidade e textura a partir do qual nada além de um monturo (um algo que retiramos do entulho) nos confronta. Posteriormente pode-se dizer "coisas", nome originário, e agora encontramo-nos na contingência de uma tarefa, a de estar em meio a um desafio proposto para cada uma das coisas, o desafio de delineá-las, de dizer o que conta como coisa.

É precisamente aqui o salto democrático-republicano. Está em não traçar limites, em não determinar características necessárias e suficientes para que algo receba o nome de coisa. Está em fazer deste "não", desta recusa, a norma. A cada vez que esticarmos as mãos em direção ao monturo voltaremos de lá com um monturo de coisas, sempre coisas e mais coisas, absurdamente irredutíveis, ao ponto em que nada mais deles se pode dizer para além do nome: coisas!
Uma democracia de indivíduos é um regime violentamente afirmativo, já se sabe de antemão o que se deve possuir para que se possa ser sujeito de direitos. A definição de indivíduo e de pessoa precisa ser feita, realizada, atualizada contra a indiscernibilidade dos particulares. O indivíduo é por definição um vencedor, aquele que triunfou por sobre particulares e lhes impôs um limite, a bela forma; não por acaso ele é tão atraente a contemplações estéticas, querendo-se até apresentá-lo como inefável. O particular, ao contrário, já desfez toda totalidade e só aceitou como geral aquilo que foi antes generalizado nele próprio. É cada uma destas coisas que capturou o alaranjado em seu devir, e a cada vez estamos perante um evento único (também único no sentido de atômico, indivisível).

A república dos particulares, das coisas comuns, é uma democracia do entulho. Tudo conta como particular, pois coisa não é outra coisa que uma referência indicíaria. Há sempre uma coisa em particular que é o referente desta referência e é com ela que é preciso negociar limites e alianças. A política dos particulares não possui uma justificativa externa. Alguns particulares se aliam e compõem um algo; se este algo é forte o suficiente resistirá, se não, irá fenecer. Este algo, entretanto, não é um todo, pois nunca é harmônico; os particulares não renunciam a todas as suas diferenças. Há sempre mais das coisas que aquilo com que podemos nos relacionar; há excesso de particular por sobre o geral e toda generalização é um ato parcial de captura e aliança.

Na democracia do entulho apenas a negatividade é anterior à política, ela é a norma fundamental, portanto. Isto quer dizer: tudo é coisa e deve ser levado em conta. Neste ato todas as normas e valores afirmativos são jogados no interior de alianças, e já estão marcados desde o princípio com o signo maldito do arbitrário e contingente, pois sempre deixam de fora algo que não tinham o direito de deixar.

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