quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Qual o limite da tolerância?



Para mim é mais do que óbvio que o discurso da tolerância e do relativismo foi cooptado pelos dominadores. Tolerar é parte do status quo. Claro que eles sabem bem o que pode ou não ser tolerado, o que é ou não digno de respeito.

Devemos tolerar Bolsonaro e Feliciano, mas a performace com as imagens "sagradas" é desrespeitosa...
Gays podem ser gays, mas têm que saber seus "limites"...
Não há discriminação racial no Brasil, são as cotas que segregam...
Poderia multiplicar exemplos ad infinitum.

A questão é: eu quero dizer que um evento horrendo - como este que acontece no Iêmen (aqui) - é absolutamente intolerável, mas não podemos fazer isto em nome de valores absolutos. Nenhum valor é absoluto, tudo só tem valor porque damos valor, só é absoluto o que alguns particulares patrocinam (instauram, fazem ser) como absoluto no real.

No fim das contas um debate sobre valores é também uma guerra; e numa guerra nada se justifica. Este não é um problema para o status quo porque ele é afirmativo. Ele se arrogou o direito de ser, o direito de se expandir, de conquistar, de construir e estabilizar, de preservar e perpetuar.

Mas na guerrilha já não temos estas ilusões. Bem sabemos que absolutizar valores, que congelar a escala de valores, jamais poderá redundar em outra coisa que na violência. O que se absolutiliza é sempre o dominador; os dominados são os efêmeros.

Então o que fazer no Iêmen? Sempre e mais uma vez: guerra de guerrilha; a guerra negativa, a guerra que se reconhece trágica e imoral. Utópica, quero dizer.

Mas aqui podemos produzir armas. Este espaço também é o da indústria, não se esqueçam. O Iêmen é o Brasil. É qualquer lugar em que mulheres são propriedades de seus maridos. Qualquer lugar em que um projeto de lei que mencione "estupro no casamento" seja imediatamente taxado de absurdo. Afinal, dizem-nos, como pode um marido ter sexo não consensual com sua esposa? Ela não é sua? Não está garantido o consentimento? Não é direito do homem usufruir de sua propriedade?

Nossas armas podem ser disruptivas. Elas aproximam o que foi feito para ser separado. Qualquer ordem é prateleira e gavetas. Nossas armas são séries inacabadas, fluxos interprateleiras e intergavetais.

Cansado de ser tolerante; é chegado o tempo de novas guerras.


3 comentários:

  1. Duas considerações sobre dois momentos desse texto. Primeiro: acredito que os discursos de tolerância e de relativismo não foram apenas apropriados pelos dominadores. Tais discursos estão inseridos no circuito do mercado da crítica: sua apropriação condiz com a aquisição de alguma bobagem em uma prateleira qualquer. Não apenas se comercializa tolerância: também "críticas" (manifestações políticas no facebook, por exemplo, não são outra coisa senão sinais deste comércio). Quando um representante do poder estabelecido intercambia uma crítica, recebe em troca recursos manifestos em fenômenos vários: renome-prestígio, legitimidade-hegemonia, etc. Isto não se refere apenas aos possíveis "despolitizados" que repassam discursos cuja aparência é de crítica. A resistência é alienação em alto grau. O desequilíbrio nessa equação deve ser inserido a partir da perspectiva histórica. Um dos temas que sempre retornam é a ideia de que uma multiplicidade sem precedentes de discursos de resistência trabalham silenciosamente para a manutenção das relações de dominação, para a perpetuação da violência e da injustiça. (Isso não desconsidera a importância dos movimentos históricos de resistência, ao contrário). O peso da decisão inalienável à dispersão. A crítica só pode ser ressarcida de seu caráter destrutivo se ela destruir em primeiro lugar a si mesma. O quanto "criticar" o Bolsonaro, a truculência da polícia, o traste do Feliciano e valorizam suas ações no mercado da crítica! Somente a perspectiva histórica, o autêntico cenário histórico subverte tal valorização. Isso se relaciona ao outro ponto. À repetição atribuímos à mitificação; apenas ela porta a autêntica subversão: a guerrilha não seria a guerra deformada? destituída de seu caráter trágico (mítico)? A crítica purificada de sua mercantilização só pode ser buscada lá nos limiares do mercado-crítico, no instante anterior à sua entrega.

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  2. "O ser passado, não ser mais, é o que trabalha com mais paixão nas coisas. [...] Prende-se a essa força e reconhece as coisas no momento do não-mais-ser. [...] E a força que nelas trabalha é a dialética. A dialética as revolve, as revoluciona, revira para baixo o que está por cima, faz delas o que nunca foram [...]. E delas nada mais resta do que o nome [...]. No íntimo desses nomes trabalha a subversão [...]". WB.

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  3. Fantástica essa citação de Benjamin! Acho que você detectou de duas formas um mesmo ponto de tensão. Primeiro quando diz do peso da decisão, a outra quando desconfia (se bem entendo) do caráter trágico da guerrilha. Acho que é uma exploração possível pra esse texto-colagem do Gaff, isso de não apenas interpretar, mas de fazer novas montagens; não tanto explicitar um texto, mas "aliançá-lo".

    Pois de princípio parecia que o trágico era exatamente a resposta à tensão. Quero dizer, não é resposta alguma, no sentido de solução, mas antes um reconhecimento da impossibilidade. É uma afirmação da fratura, do desacordo. Eu entenderia o trágico, o mítico e a repetição como notas em um mesmo tom, sem dúvida, mas com Deleuze eu diria que a repetição não é outra coisa que a condição de possibilidade da diferença. A repetição só se repete para trazer o diferente. Mas um diferente fraturado, pois indeciso; a guerrilha não pode tomar o poder sem se anular como guerrilha. Não diria que se trata de uma afirmação puramente contrastiva, no sentido de que o guerrilheiro só pudesse dizer o que não é (ou só pudesse dizer o que é de modo negativo), mas que o guerrilheiro não é propriamente, não possui identidade, de que ele é algo entre 0 e 1 (um infinitesimal) que se pode somar indefinidamente sem jamais chegar a um todo harmônico. Ele recusa a ordem porque recusa isto da contemplação, do que visto de fora pode se mostrar como uma paisagem. O guerrilheiro talvez seja o anti-romântico, no sentido de que ele também não é a forma do belo, mas o horror do incompleto, do que não possui ser fora da relação. A ecologia do guerrilheiro é do manguezal mais que do Discovery Chanell.

    Mas daí o outro ponto de tensão. Exatamente o peso da decisão. Da necessidade absolutamente urgente de dizer que certas coisas não devem acontecer mais. Uma recusa radical e intransigente de certos eventos. O guerrilheiro bem sabe que não tem um ponto de vista ético (ou estético) que possa amparar sua política (nada se justifica); daí ela ser trágica, ela é sempre tocada em um mesmo tom, está sempre em um mesmo ritmo, em uma mesma vibração. Ela é insistentemente repetitiva, mas o mesmo é sempre a diferença, e ela é sempre ruptura do estabelecido.

    Chamou-me muito a atenção que o Benjamin tenha dito "no íntimo desses nomes", que tenha dito "nomes" aqui. Viajando um pouco na citação, é como se ele percebesse uma relação extra-significativa entre os nomes e as coisas. Como se o nome fosse uma espécie de âncora ontológica que atravessasse a língua para além do atual, do que alcançou ser e sentido, para nos colocar em contato com um algo, o referente, que nos arrasta ao próprio devir. O referente está fora da linguagem, e só porque há referentes podemos construir sentido. Mas o referente não são "pequenas coisinhas", nem é a "coisa-em-si", é o próprio devir, a força radicalmente particular em cada coisa, onde ela trabalha na negação de ser. Fiquei pensando uma relação possível entre "coisas comuns e particulares", "referente" e "devir"...

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