O consenso liberal pressupõe um tipo específico
de ontologia que é construída desde a perspectiva do Estado.
Olhando o mundo deste ponto, a situação é composta de referentes
mais ou menos estáveis sobre os quais é preciso legislar. Há uma
realidade “clarificável” e “determinável” sobre a qual
variam apenas as opiniões. O mundo é desde sempre o mesmo, ainda
que estejamos errados acerca dele. O consenso é um modus vivendi
entre a diversidade de opiniões, não de mundos: nossas enunciações
são contingentes, não seus objetos. “Alcançar um consenso” é
expressão do sucesso de uma negociação política (talvez em
contraposição ao consenso das comunidades científicas, que são um modo
modesto dizer como pensamos que o mundo é).
Não tenho o
menor interesse em elaborar uma política desde o Estado. Não
obstante, me parece que a mera diversidade de opiniões contradiz a
situação básica de partilhar uma situação, o ter que me virar
num lugar ante problemas compartilhados. Como seria possível
possível pensar um consenso desde um lugar pelo qual o poder
circula, mas nunca se coagula e estabiliza? Suspeito que estejamos
muito viciados a ver o Estado como um objeto; e pode ser que todo
consenso seja portanto não mais que uma estabilização. Gostaria de
imaginar um consenso da circulação, dos canais de interligação,
da provisoriedade, das preposições muito mais que dos substantivos.
Então me ocorreu chamar a este consenso “democrático” para
contrapô-lo ao consenso liberal. Há toda uma teoria da democracia
como caminho para a superação do capitalismo sobre a qual não
falarei agora, gostaria apenas de apresentá-lo como algo muito menos
otimista e cínico que o consenso liberal. Uma vez que foi rejeitada
a dualidade mundo-opinião, não há “o” mundo sobre o qual
divergimos e precismos entrar em consenso. Opinião e mundo são dois
termos em definição na situação, estão no mesmo nível
ontológico. Parece-me que esse consenso é sobremaneira
decepcionante para o liberal, pois de início já abandonamos a
ilusão de que aos referentes possa corresponder uma miríade
determinável de significados. Suponha-se uma legislação sobre o
“solo urbano”. O consenso liberal pressupõe que há um troço aí
defronte sobre o qual disputamos uma norma; mas se o objeto não está
fixado, se o referente excede aos significados, então tanto estamos
em mundo-opiniões divergentes quanto as normas instauram novos
espaços de circulação do poder. Uma norma delineia um lugar
objetivável, é uma máquina de objetivações, totalmente
imprevisível e entregue às contingências da situação.
O consenso
democrático reconheceria não a necessidade de estabilização do
sistema (uma padronização das máquinas). Ele muito antes se
debateria contra a expansão violenta situada nas fronteiras de cada
mundo. Todos os mundos se tocam: a situação se move invadindo,
superpondo, sobrepondo, misturando, deslocando. Instaurado na
relação, no poder que circula por entre as máquinas, um mundo se
contrapõe a um excesso de possível (nas fronteiras que ele
delineia, nos silenciamentos que produz); ele é fundamento negativo
de outros mundos possíveis. Gostaria de ver um caráter
indiciário-indicativo nos referentes que se impõe à instauração
de cada mundo. Cada mundo está na referência, mas não como em uma
série de significados determináveis e sim como em em uma tarefa de
referência. Não é o fato de que o solo urbano tem “significado
múltiplos” o que nos obriga a buscar o consenso. É que o solo
urbano se impõe como um algo que tem que ser referido, que deve ser
dito, que magnetiza e desloca a língua: é isto o que força a
situação a cada instante em um devir específico, sempre único
contingente, irrepetível. Porque a tarefa de referência devém
diferença na linguagem os mundos não podem mais celebrarem-se a si
mesmos como um universo de relações já devindas e objetivadas: o
mundo na diferença irrompe entre a linguagem, nos interstícios incompletos da linguagem.
A divergência
que pede o consenso talvez seja o sinal de desespero, a impaciência
demasiado humana, compromisso humanista, não sei. Será que buscamos
o consenso como guerreiros, muito mais que como sujeitos racionais?
Batalhamos por algo que já deveio, por um mundo já atrelado a
referentes. Parece que o referente pressiona e suporta cada uma das
relações ao mesmo tempo em que as recusa, que as rejeita. O
referente é objeto. Nosso consenso democrático acerca do objeto
partilha nossos devaneios, mas sabe que o objeto já sempre deslizou
de novo, para uma nova situação, tornando líquidas, imprecisas e
fluentes as linhas dos códigos jurídicos, impossibilitando
eternamente qualquer consenso liberal, desagregando o Estado e
insinuando: o consenso democrático mora no movimento.
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