quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Sobre o consenso


O consenso liberal pressupõe um tipo específico de ontologia que é construída desde a perspectiva do Estado. Olhando o mundo deste ponto, a situação é composta de referentes mais ou menos estáveis sobre os quais é preciso legislar. Há uma realidade “clarificável” e “determinável” sobre a qual variam apenas as opiniões. O mundo é desde sempre o mesmo, ainda que estejamos errados acerca dele. O consenso é um modus vivendi entre a diversidade de opiniões, não de mundos: nossas enunciações são contingentes, não seus objetos. “Alcançar um consenso” é expressão do sucesso de uma negociação política (talvez em contraposição ao consenso das comunidades científicas, que são um modo modesto dizer como pensamos que o mundo é).

Não tenho o menor interesse em elaborar uma política desde o Estado. Não obstante, me parece que a mera diversidade de opiniões contradiz a situação básica de partilhar uma situação, o ter que me virar num lugar ante problemas compartilhados. Como seria possível possível pensar um consenso desde um lugar pelo qual o poder circula, mas nunca se coagula e estabiliza? Suspeito que estejamos muito viciados a ver o Estado como um objeto; e pode ser que todo consenso seja portanto não mais que uma estabilização. Gostaria de imaginar um consenso da circulação, dos canais de interligação, da provisoriedade, das preposições muito mais que dos substantivos. Então me ocorreu chamar a este consenso “democrático” para contrapô-lo ao consenso liberal. Há toda uma teoria da democracia como caminho para a superação do capitalismo sobre a qual não falarei agora, gostaria apenas de apresentá-lo como algo muito menos otimista e cínico que o consenso liberal. Uma vez que foi rejeitada a dualidade mundo-opinião, não há “o” mundo sobre o qual divergimos e precismos entrar em consenso. Opinião e mundo são dois termos em definição na situação, estão no mesmo nível ontológico. Parece-me que esse consenso é sobremaneira decepcionante para o liberal, pois de início já abandonamos a ilusão de que aos referentes possa corresponder uma miríade determinável de significados. Suponha-se uma legislação sobre o “solo urbano”. O consenso liberal pressupõe que há um troço aí defronte sobre o qual disputamos uma norma; mas se o objeto não está fixado, se o referente excede aos significados, então tanto estamos em mundo-opiniões divergentes quanto as normas instauram novos espaços de circulação do poder. Uma norma delineia um lugar objetivável, é uma máquina de objetivações, totalmente imprevisível e entregue às contingências da situação.

O consenso democrático reconheceria não a necessidade de estabilização do sistema (uma padronização das máquinas). Ele muito antes se debateria contra a expansão violenta situada nas fronteiras de cada mundo. Todos os mundos se tocam: a situação se move invadindo, superpondo, sobrepondo, misturando, deslocando. Instaurado na relação, no poder que circula por entre as máquinas, um mundo se contrapõe a um excesso de possível (nas fronteiras que ele delineia, nos silenciamentos que produz); ele é fundamento negativo de outros mundos possíveis. Gostaria de ver um caráter indiciário-indicativo nos referentes que se impõe à instauração de cada mundo. Cada mundo está na referência, mas não como em uma série de significados determináveis e sim como em em uma tarefa de referência. Não é o fato de que o solo urbano tem “significado múltiplos” o que nos obriga a buscar o consenso. É que o solo urbano se impõe como um algo que tem que ser referido, que deve ser dito, que magnetiza e desloca a língua: é isto o que força a situação a cada instante em um devir específico, sempre único  contingente, irrepetível. Porque a tarefa de referência devém diferença na linguagem os mundos não podem mais celebrarem-se a si mesmos como um universo de relações já devindas e objetivadas: o mundo na diferença irrompe entre a linguagem, nos interstícios incompletos da linguagem.


A divergência que pede o consenso talvez seja o sinal de desespero, a impaciência demasiado humana, compromisso humanista, não sei. Será que buscamos o consenso como guerreiros, muito mais que como sujeitos racionais? Batalhamos por algo que já deveio, por um mundo já atrelado a referentes. Parece que o referente pressiona e suporta cada uma das relações ao mesmo tempo em que as recusa, que as rejeita. O referente é objeto. Nosso consenso democrático acerca do objeto partilha nossos devaneios, mas sabe que o objeto já sempre deslizou de novo, para uma nova situação, tornando líquidas, imprecisas e fluentes as linhas dos códigos jurídicos, impossibilitando eternamente qualquer consenso liberal, desagregando o Estado e insinuando: o consenso democrático mora no movimento.

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