Que ela seja uma ética do faz de conta. No princípio não um dever ser, esta categórica negação do ser, mas um "podia ser". Ainda a norma, a regra, o "ter que", mas já sem qualquer garantia. Um instante de compromisso, um toque, um olhar, quando juntos saltamos: ___vamos brincar de ser kantianos?
E então não serão belas cenas. São enredos terríveis aos quais teremos de nos entregar. A abertura à experiência que a norma permite é - tem que ser - restrita. Nossos enredos estão hiperdeterminados. Por todos os lados aparecem e nos requisitam desfechos irresistíveis. Como bons atores a eles nos entregamos, neles nos dissolvemos, com eles dissolvemos a identidade, restamos no que não pode ser delimitado e aí deixamos ser montagens e trajetórias. Nem ser nem dever ser. Devir. Que seja do devir nossa ética de atores!
As trajetórias forçam-nos ao movimento. O que tem que ser feito, tem que ser feito. Esta a gritaria em meio à qual encenamos, não se esqueça. Mas não buscamos um movimento "livre". Aqui não pode ser, para além do instante, o indeterminado. É muito precária a nossa situação! Encenar uma norma que produzirá certas trajetórias, trajetórias kantianas: aí buscamos a ética. Já sabemos de antemão, entretanto, da impossibilidade. Quando finalmente alcançar ser, o enredo será tanto a negativação quanto a redução (o desvio) do "podia ser" com o qual sonhamos. A ética do movimento se instaura na destruição - e aí se nega como ética.
Como atores faremos o que tem que ser feito. Vamos devir facínoras se isto é o que o enredo para nós preparou. Deterministicamente facínoras. Instantaneamente facínoras. Quando o devir alcançar ser não mais haverá ética, mas até lá podemos encená-la, podemo ser éticos, desde que aceitemos a dissolução no múltiplo, desde que habitemos o movimento e nele percorramos o que podia ser. Visando o mínimo, a abstenção, não contra-movimento, mas movimento delicado... talvez possamos devir éticos, mas no devir toda identidade tem ainda que ser feita. E nada se faz sem destruição. Quer isto dizer que o preço da ética é a identidade?
"Também a arte dionisíaca quer nos convencer do eterno prazer da existência: só que não devemos procurar esse prazer nas aparências, mas por trás delas. Cumpre-nos reconhecer que tudo quanto nasce precisa estar pronto para um doloroso ocaso; somos forçados a adentrar nosso olhar nos horrores da existência individual - e não devemos todavia estarrecer-nos: um consolo metafísico nos arranca momentaneamente da engrenagem das figuras mutantes. Nós mesmos somos realmente, por breves instantes, o ser primordial e sentimos o seu indomável desejo e prazer de existir; a luta, o tormento, a aniquilação das aparências se nos afiguram agora necessários, dada a pletora de incontáveis formas de existência a comprimir-se e a empurrar-se para entrar na vida, dada a exuberante fecundidade da vontade do mundo; nós somos trespassados pelo espinho raivante desses tormentos, onde quer que tenhamos tornado um só, por assim dizer, com esse incomensurável arquiprazer na existência e onde quer que pressintamos, em êxtase dionisíaco, a indestrutibilidade e a perenidade deste prazer. Apesar do medo e da compaixão, somos os ditosos viventes, não como indivíduos, porém como uno vivente, com cujo gozo procriador estamos fundidos".
ResponderExcluirF. Nietzsche. O Nascimento da Tragédia.