Acabo de assistir à entrevista do
Lobão ao Yahoo (aqui);
não pretendia escrever sobre ele, mas chegou a uma situação para mim
insuportável.
Eu devo estar entre os poucos que
sempre o levou a sério. Conheço relativamente bem a discografia dele, sobretudo
a dele mais velho. Curti Nostalgia da
Modernidade, que poucos entenderam; adoro canções como o “O Grito” e “O
samba da caixa preta” em A Noite, mas
foi em A vida é doce (um disco que
posso cantar todas as músicas enquanto ouço),
sem dúvida, que ele alcançou um patamar diferente. É um disco sensível e
agressivo, aquela combinação que só os melancólicos são capazes de entender. Quando
ouvi Canções Dentro da Noite Escura
empolguei-me como poucas vezes. É sua obra-prima, daquelas que a cada vez que
se entra se sai com algo novo. Lobão é sim um grande músico, ressalto isto para
afirmar que o comentário do Emir Sader é ignorante e preconceituoso – e assume
uma estratégia que a esquerda precisa evitar desesperadamente neste momento: a
de subestimar seus adversários.
É importante refutar o Lobão. Não
porque ele seja um grande intelectual (seja lá o que isto signifique), mas
porque a posição que ele defende vem sendo sistematicamente repetida pela
direita. Ela tem potencial mitificador, isto é perigoso.
A partir de uma verdade – a de
que nem todos os que lutaram contra a
ditadura lutaram por um modelo
democrático-liberal – afirma-se uma mentira ridiculamente tosca: a de que os
que hoje estão no poder, e lutaram pelo socialismo, governam “socialisticamente”.
Lobão chega ao extremo de dizer que vivemos numa “ditadura de esquerda”.
Não se trata de afirmar uma
mudança de trajetórias pessoas (de afirmar que Dilma mudou), mas de acenar para
a incapacidade de se discutir política apelando apenas a trajetórias pessoais. É
equivocado entender o “governo Dilma” como o “governo da Dilma”. Qualquer
governo é expressão de uma correlação de forças ao redor de um projeto
político. Perante isto é forçoso admitir: nenhum governo PT foi de esquerda,
embora tenha aberto espaço para demandas, sobretudo sociais, de grupos de esquerda
(espaço cada vez menor, diga-se). Basta ver a ótima relação do governo com a
bancada agrarista (os indígenas colocados de lado e os ambientalistas acuados)
e com os banqueiros. Sem falar da atuação do BNDES como financiador dos
conglomerados brasileiros.
Quando concentra seus ataques no
PT, Lobão não entende o caráter institucional de certos problemas. O sistema
eleitoral que o PT hoje utiliza a seu favor, mas que em verdade tende a ficar
na mão do governo (o que em SP é constantemente mobilizado pelo PSDB, por
exemplo); a hipertrofia do executivo; a chamada “governabilidade”; a absoluta
falta de representatividade dos partidos políticos (todos partidos de cúpula),
etc. O PT não criou estes problemas – o que não serve de desculpa, e daí a
sensação de total desilusão da verdadeira esquerda. Lobão insiste em fatos
pessoais e não tem a menor ideia do que é uma política de Estado (expressão de
um projeto político duradouro) e de sua diferença em relação às posições
governamentais e às posições dos governantes. Cuba é um excelente exemplo. Não
faz sentido algum para o Brasil não ter relações diplomáticas com Cuba. Mas o
Lobão entende que isto é prova de alguma coisa em relação ao governo Dilma. Nem
deve saber que foram relações reestabelecidas sob o governo Sarney e que muito
provavelmente nenhum diplomata sério (que saiba que a Guerra Fria acabou)
defenderia rompimento de relações.
O erro fundamental está na
afirmação de uma posição política simplesmente a partir de um “não” ou um “sim”
ante o governo federal. Nenhum ator político age efetivamente assim. Os
agraristas não estão “com” nem “contra” o governo; eles estão por eles mesmos.
Na medida em que houver espaço para suas demandas estarão mais com do que
contra. Lobão chega a ser patético quando identifica “contestação ao status quo”
com “contestação ao governo”; ele tenta nos convencer de que ele e Reinaldo
Azevedo são os verdadeiros contestadores. Essencialmente o mesmo erro: a
identificação do status quo ao governo federal. Como um colunista da Veja (expressão
mais tradicional do status quo) pode ser alguém colocado de lado no debate para
mim é um mistério. Como alguém que possui um espaço imenso para diariamente
destilar ódio e preconceito pode ser um injustamente perseguido, eu também não
posso entender. Quando Hitler contestava a República de Weimar, era ele de
esquerda? Contestava ele o status quo? O argumento é tão ridículo que deve ter
envergonhado Olavo de Carvalho.
Lobão é claramente um ignorante
político. É incapaz de ultrapassar o nível bigráfico dos atores e se perguntar pelo
que fazem, pelas alianças que são instauradas nestas ações. O que é recolocado a cada ação de um ator?
Esta é a pergunta relevante. Quando 60 brancos recebem as 60 vagas de um curso
de medicina, o que se reitera no corpo social? E quando um homossexual é
assassinado por ser homossexual? E quando um adolescente passa por todo o
ensino médio sem saber interpretar um texto? E quando um policial militar dá um
baculejo em um jovem na periferia? Política é repetição e permanência. Não
importam os programas de ação, importa se eles são capazes de se impor a cada vez.
Lobão é um alerta para a
necessidade de debate aberto, de debate verdadeiramente argumentativo. Não se
pode aceitar a identificação entre as demandas políticas de esquerda com as
ações do governo PT. Devemos falar de
história novamente. A esquerda não esteve no poder apenas em supostas
ditaduras socialistas. A democracia
irrestrita é ela mesma uma demanda de esquerda. Nem toda esquerda é
socialista, assim como nem toda ela é contra o capitalismo. Mas toda ela será
necessariamente contra o status quo, este que Lobão não sabe o que é, mas que o
pessoal do MPL sabe bem porque o enfrenta, os Black Blocs também porque agem
nele, que os negros sabem, que as mulheres sabem. Que a classe trabalhadora
sabe.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirÉ isto. A questão é falar de história. O cenário político-partidário no Brasil está absolutamente corrompido. O que interessa é não ceder nas bandeiras "concretas". Cotas raciais, delegacias da mulher, médicos na periferia, etc., aí está o que precisamos defender de modo intransigente. A integração tem uma possibilidade disruptiva valiosa. No fundo a fobia da classe dirigente tem sentido. É como você sempre diz, quando um jovem da periferia se torna advogado, mesmo que formado na unip, e recusa um baculejo, a ação dele é por si mesma revolucionária. Guerrilha é isso. Não interessa o geral que não possa ser generalizado através de micro-particularizações, os "a cada" contra os "toda" e o "tudo".
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