Assusta-me a proliferação da intolerância.
Um jovem, negro, é atacado por um grupo de justiceiros e
acorrentado, nu, pelo pescoço. Talvez seja verdade que ele não foi acorrentado “por
ser negro” (como em geral homossexuais apanham “por serem homossexuais”), mas
não é menos verdade que ser negro o coloca na situação em que tais coisas
poderiam lhe acontecer. Essa a sutileza do nosso racismo. A cor da pele sempre
pode ser escamoteada como causa, mas nunca é um componente ausente na violência.
O que me chamou a atenção, entretanto, foi a torrente de
identificação com os “justiceiros”, que a triste Sheherazade repercutiu,
em mais um de seus espetáculos de preguiça de pensar e promoção da intolerância.
Não vou insistir na ambiguidade dos valores que ela promove. Nem vou acusa-la
de mau-caráter. Não acho que ela seja uma pessoa ruim. Como ela vê o mundo? De
que lugar? O único lugar possível, aquele em que ela imediatamente se coloca,
de onde e para onde ela fala, é o do “cidadão de bem”, supostamente vítima
deste jovem, que segundo os relatos seria um assaltante. Sua solidariedade é
para com as vítimas da vítima dos justiceiros. Para o jovem negro propriamente
dito, apenas a indiferença. Para aqueles que se colocam a insistir em que
também ele é digno de consideração, para estes ela reserva a raiva, o clássico “adote
um bandido”.
É possível que o debate aqui seja ao redor do que quer dizer
ser “de bem”. Para Sheherazade é como se houvesse uma essência, uma natureza
imanentemente boa no “cidadão”, e outra imanentemente má no “bandido”. O que
define as trajetórias de vida já estaria como que marcado no sangue. É provável
que ela reconheça alguma “influência do meio”, mas elas são prévias. Até se “tornar”
ou se “revelar” “bandido”. Após isto não há muito que ser feito. Ele escolheu “o
caminho do mal” (ao qual já estava antes destinado). O cidadão de bem torce o
nariz para palavras como “reabilitação” e enche seu coração de esperança com “mais
polícia”, “mais escolas militares”, “mais repressão”. O bandido é mau e deve
ser extirpado, assim pensa um justiceiro.
Acredito que solidariedade seja o mais radical dos
mandamentos éticos que podemos nos impor. Ele não apenas coloca na nossa
relação com o outro uma obrigação de levá-lo em consideração, mas pressupõe
ainda que não há um “eu essencial” por detrás de todas as relações. Devemos
levar o outro em consideração porque nada me garante que, naquela mesma
situação, eu não agiria da mesma forma. Porque a escolha da ação é algo que está
constantemente em jogo na situação, e porque a situação é hiperdeterminada
(causas biológicas e físicas se entrecruzam a causas sociais e culturais,
etc.), não é correto representar os interesses do outro como pré-determinados.
O mais provável é que este jovem nunca quisesse propriamente ser um “bandido”.
Não tivesse ele sido colocado nas situações em que foi, não teria sido. Não
existem pessoas “de natureza” ruim. Nem mesmo a natureza é “de natureza”
natural. Também ela é feita e refeita a cada instante. Uma ética da
solidariedade talvez precise começar pelas dificuldades em enfrentar o passado,
pelas ansiedades de ter que ter um futuro. É uma ética do devir.
Por não possuir um eu “pronto e acabado” ao qual atribuir as
ações, mas apenas um “eu situado”, esta ética não perde a noção de
responsabilidade, pelo contrário, ela a generaliza. Devemos ser solidários
porque somos todos, em graus diferentes, responsáveis pelas situações que eventualmente
produzem violência contra o outro. O “cidadão de bem” gostaria de ver garantido
seu direito de consumir uma TV, está disposto a aceitar as mais incríveis intervenções
para ver garantido seu direito de “consumir em paz”, mas o consumo mesmo
pressupõe um engajamento social, pressupõe participar, tomar parte. Os
proponentes da ética individualista acusam a ética da solidariedade de
relativizar a responsabilidade. Nada mais incorreto. Aqui se radicaliza a noção
de responsabilidade ao ponto de renunciar a todo desejo de ser indiferente.
Ironia final: não adotamos os bandidos, mas vemos no mundo um mundo-comum e
tudo o que acontece nele como, de algum modo e em algum grau, interconectado
com nossas ações. “Cidadão de bem” e “bandido” não passam de papéis, de lugares
momentâneos, nos quais todos nós em algum contexto podemos nos encontrar.
Aquela imagem e sua história foi uma das coisas mais terríveis que vi nos últimos tempos. Uma tal ética da solidariedade esbarraria na impossibilidade de, no meu caso, me sentir solidário aos agressores; independentemente de reconhecer (e reconheço) as circunstâncias que conectam a ação deles com as minhas.
ResponderExcluirCara, até agora não consegui organizar direito o que penso e o que sinto ante esse caso... aquilo foi como que a materialização de tudo o que há de infernal... sei lá... É realmente dificílimo sentir qualquer solidariedade pelos agressores... mas tem que ser... preciso dizer que também eles, embora responsáveis, não são culpados. E mais que isto, colocarmo-nos na posição de agressor torna-nos ainda mais radicalmente responsáveis por este horror. Torna a ação ainda mais urgente. Como se nosso tempo demandasse, necessariamente, uma ética que se extrapole rumo à política...
ExcluirFico pensando se isso não é um reconhecimento de impotência... propor caminhos éticos pra questões políticas, mas nosso tempo se despolitiza assustadoramente... não sei o que fazer...