quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Solidariedade



Assusta-me a proliferação da intolerância.

Um jovem, negro, é atacado por um grupo de justiceiros e acorrentado, nu, pelo pescoço. Talvez seja verdade que ele não foi acorrentado “por ser negro” (como em geral homossexuais apanham “por serem homossexuais”), mas não é menos verdade que ser negro o coloca na situação em que tais coisas poderiam lhe acontecer. Essa a sutileza do nosso racismo. A cor da pele sempre pode ser escamoteada como causa, mas nunca é um componente ausente na violência.

O que me chamou a atenção, entretanto, foi a torrente de identificação com os “justiceiros”, que a triste Sheherazade repercutiu, em mais um de seus espetáculos de preguiça de pensar e promoção da intolerância. Não vou insistir na ambiguidade dos valores que ela promove. Nem vou acusa-la de mau-caráter. Não acho que ela seja uma pessoa ruim. Como ela vê o mundo? De que lugar? O único lugar possível, aquele em que ela imediatamente se coloca, de onde e para onde ela fala, é o do “cidadão de bem”, supostamente vítima deste jovem, que segundo os relatos seria um assaltante. Sua solidariedade é para com as vítimas da vítima dos justiceiros. Para o jovem negro propriamente dito, apenas a indiferença. Para aqueles que se colocam a insistir em que também ele é digno de consideração, para estes ela reserva a raiva, o clássico “adote um bandido”.

É possível que o debate aqui seja ao redor do que quer dizer ser “de bem”. Para Sheherazade é como se houvesse uma essência, uma natureza imanentemente boa no “cidadão”, e outra imanentemente má no “bandido”. O que define as trajetórias de vida já estaria como que marcado no sangue. É provável que ela reconheça alguma “influência do meio”, mas elas são prévias. Até se “tornar” ou se “revelar” “bandido”. Após isto não há muito que ser feito. Ele escolheu “o caminho do mal” (ao qual já estava antes destinado). O cidadão de bem torce o nariz para palavras como “reabilitação” e enche seu coração de esperança com “mais polícia”, “mais escolas militares”, “mais repressão”. O bandido é mau e deve ser extirpado, assim pensa um justiceiro.

Acredito que solidariedade seja o mais radical dos mandamentos éticos que podemos nos impor. Ele não apenas coloca na nossa relação com o outro uma obrigação de levá-lo em consideração, mas pressupõe ainda que não há um “eu essencial” por detrás de todas as relações. Devemos levar o outro em consideração porque nada me garante que, naquela mesma situação, eu não agiria da mesma forma. Porque a escolha da ação é algo que está constantemente em jogo na situação, e porque a situação é hiperdeterminada (causas biológicas e físicas se entrecruzam a causas sociais e culturais, etc.), não é correto representar os interesses do outro como pré-determinados. O mais provável é que este jovem nunca quisesse propriamente ser um “bandido”. Não tivesse ele sido colocado nas situações em que foi, não teria sido. Não existem pessoas “de natureza” ruim. Nem mesmo a natureza é “de natureza” natural. Também ela é feita e refeita a cada instante. Uma ética da solidariedade talvez precise começar pelas dificuldades em enfrentar o passado, pelas ansiedades de ter que ter um futuro. É uma ética do devir.


Por não possuir um eu “pronto e acabado” ao qual atribuir as ações, mas apenas um “eu situado”, esta ética não perde a noção de responsabilidade, pelo contrário, ela a generaliza. Devemos ser solidários porque somos todos, em graus diferentes, responsáveis pelas situações que eventualmente produzem violência contra o outro. O “cidadão de bem” gostaria de ver garantido seu direito de consumir uma TV, está disposto a aceitar as mais incríveis intervenções para ver garantido seu direito de “consumir em paz”, mas o consumo mesmo pressupõe um engajamento social, pressupõe participar, tomar parte. Os proponentes da ética individualista acusam a ética da solidariedade de relativizar a responsabilidade. Nada mais incorreto. Aqui se radicaliza a noção de responsabilidade ao ponto de renunciar a todo desejo de ser indiferente. Ironia final: não adotamos os bandidos, mas vemos no mundo um mundo-comum e tudo o que acontece nele como, de algum modo e em algum grau, interconectado com nossas ações. “Cidadão de bem” e “bandido” não passam de papéis, de lugares momentâneos, nos quais todos nós em algum contexto podemos nos encontrar.

2 comentários:

  1. Aquela imagem e sua história foi uma das coisas mais terríveis que vi nos últimos tempos. Uma tal ética da solidariedade esbarraria na impossibilidade de, no meu caso, me sentir solidário aos agressores; independentemente de reconhecer (e reconheço) as circunstâncias que conectam a ação deles com as minhas.

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    1. Cara, até agora não consegui organizar direito o que penso e o que sinto ante esse caso... aquilo foi como que a materialização de tudo o que há de infernal... sei lá... É realmente dificílimo sentir qualquer solidariedade pelos agressores... mas tem que ser... preciso dizer que também eles, embora responsáveis, não são culpados. E mais que isto, colocarmo-nos na posição de agressor torna-nos ainda mais radicalmente responsáveis por este horror. Torna a ação ainda mais urgente. Como se nosso tempo demandasse, necessariamente, uma ética que se extrapole rumo à política...

      Fico pensando se isso não é um reconhecimento de impotência... propor caminhos éticos pra questões políticas, mas nosso tempo se despolitiza assustadoramente... não sei o que fazer...

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